"Como ela pedia remédio se a patroa é uma médica?"

"Como ela pedia remédio se a patroa é uma médica?"

Vizinhos revelam detalhes da mulher mantida como escrava em Ribeirão Preto

Vizinhos do casal que manteve por 27 anos uma empregada doméstica em trabalho análogo à escravidão, no bairro Ribeirania em Ribeirão Preto, contaram detalhes sobre o caso à Revide.

 

A situação foi revelada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), após operação realizada no dia 24 de outubro, em parceria com o Ministério do Trabalho e Previdência - Gerência Regional do Trabalho de Ribeirão Preto e da Polícia Militar.

 

Moradores que preferiram não ser identificados afirmaram que a empregada chegou a pedir remédios para dor de cabeça a vizinhos. O detalhe que mais revoltou quem mora próximo ao casal é que a patroa atua como médica.

 

"Ela pedia coisas básicas, como sabão, ajuda para costurar uma toalhinha de mesa e remédio para dor de cabeça. Pensávamos: 'como ela está pedindo remédio se a patroa é uma médica?'. Isso nos deixava indignados, mas pensávamos apenas que era uma má patroa, não que chegava a esse nível de escravidão", revelou uma fonte que preferiu não ser identificada.

 

Segundo os vizinhos, apesar desses episódios, o comportamento do casal e da empregada não levantava maiores suspeitas. "Eu sabia que era uma funcionária que morava na casa, mas não tinha dimensão do que acontecia com ela. Me dá nojo! Uma coisa que aconteceu debaixo do nosso nariz e não percebemos. Quando acontece algo do tipo falamos: 'mas como que os vizinhos não perceberam nada?'. E hoje eu vejo isso e fico me perguntando o mesmo", declarou uma moradora. 

 

A vizinhança ressalta que o casal era muito recluso, porém, o traço mais marcante da patroa para com a empregada era a sua rigidez. Já o da empregada era o seu jeito extremamente humilde, destoando do padrão de vida da família para o qual ela trabalhava. 

"Ela [a empregada] vivia sempre muito mal vestida, com roupas muito puídas, chinelo gastos, sempre um lencinho prendendo os cabelos. Uma imagem que não é nenhum pouco condizente com um funcionário de uma casa em bairro de alto padrão", acrescentou a vizinha.

 

Entenda o caso

 

Uma empregada doméstica de 82 anos foi resgatada após trabalhar por 27 anos em condição análoga à escravidão para um casal em Ribeirão Preto.  A operação foi realizada  no dia 24 de outubro, com a participação do Ministério Público do Trabalho (MPT), do Ministério do Trabalho e Previdência - Gerência Regional do Trabalho de Ribeirão Preto e da Polícia Militar,

 

Na sexta-feira, 1º de dezembro, uma decisão judicial obtida pelo MPT determinou o bloqueio de bens do casal acusado de mantê-la trabalhando sem salário e sem folgas pelo período de 27 anos, no valor de R$ 815 mil. A transferência de um veículo pertencente aos réus já foi alvo do bloqueio. 

 

O montante será transferido para a trabalhadora, com o objetivo de reparar uma vida inteira de submissão e abusos praticados pelos empregadores. Segundo provas carreadas no inquérito civil, a empregado doméstica, negra e analfabeta, passou quase três décadas “sonhando em ter uma casinha”, na esperança de que a empregadora estivesse juntando dinheiro para que ela realizasse o desejo de longa data. 

 

Contudo, as provas apontam para o fato de que os patrões a enganaram durante todo o período, deixando de pagar salários, com a justificativa de que estariam “guardando dinheiro pra ela”.  

 

A trabalhadora prestava serviços ao casal todos os dias, sem receber salário. Em depoimento, disse que “não conhecia dinheiro”.  A vítima contou que os patrões enviavam cerca de R$ 100 todos os meses ao seu irmão, que é residente na cidade de Jardinópolis.

 

Beneficiária do Benefício Previdenciário Continuado (BCP), por conta da idade avançada, a empregada doméstica não tinha sequer acesso ao seu cartão de saque, que ficava de posse da patroa. Não existem recibos de pagamentos de direitos trabalhistas ou conta corrente que fosse usada para o pagamento de salário. 

 

Vítima foi "dada" de uma família para outra

 

“É importante frisar que a vítima, como a própria afirmou em seu depoimento, começou a trabalhar como doméstica ainda criança, na casa de outra família, sendo 'cedida' para os atuais empregadores após o falecimento da antiga empregadora. Sem estudos, sem amigos ou relacionamentos amorosos, se submeteu a tal situação de trabalho por ser extremamente vulnerável", detalhou o  procurador Henrique Correia. 

 

"Mulher, negra, de origem humilde, analfabeta, ela é mais um exemplo de interseccionalidade, uma vez que evidencia a sobreposição de opressões e discriminações existentes em nossa sociedade, as quais permitiram que tantos anos se passassem sem que a presente situação de exploração fosse descoberta pela comunidade que rodeava a família”, acrescentou Correia. 

 

Patroa tentou fugir

 

Durante a inspeção, a empregadora dirigiu-se à auditora fiscal, por duas ocasiões, com frases agressivas, como “minha vontade era de te esganar”, e “eu queria te bater, se eu pudesse”. Ela tentou frustrar o processo fiscal, primeiramente tentando fugir da residência, levando consigo a trabalhadora, tendo sido reconduzida ao local pelos policiais militares, depois, evitando que a trabalhadora fosse identificada, tentando impedir a entrega de documentos pessoais. 

 

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Foto: Divulgação MPT

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