Os legados da imigração alemã na região
Ribeirão Preto seria completamente outra sem o trabalho de imigrantes que prosperaram e fizeram a região prosperar nos últimos 200 anos
Imagine uma Ribeirão Preto nascente sem o império do “rei do café” Francisco Schimidt, que legou à cidade as terras e imóveis históricos do campus local da USP. Ou sem o investimento de Antonio Zerrener na fundação da Companhia Antarctica Paulista, responsável pela construção do complexo arquitetônico Quarteirão Paulista, que inclui o Theatro Pedro II, o Edifício Meira Junior (choperia Pinguim) e o Centro Cultural Palace. Pense se Antonio Diederichsen não tivesse construído o primeiro edifício com mais de três andares da cidade, com seu Cine São Paulo e a Cafeteria Única; ou fundado e sido o primeiro presidente da Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto (Acirp). E será que a cultura local seria a mesma sem a Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto, que Max Bartsch ajudou a fundar, em 1938, e da qual foi o primeiro presidente?
O que todos esses empreendedores tiveram em comum, além da influência decisiva sobre o desenvolvimento econômico e cultural de Ribeirão Preto, é uma história de imigração alemã para o Brasil – natural da Prússia (um dos reinos que formavam a região que veio a se tornar o Estado Alemão, com a unificação de 1871), Schmidt chegou ao país criança, em 1858, com os pais; Antonio Zerrener deixou a cidade de Lübeck pelo Brasil aos 19 anos, em 1862; Diederichsen nasceu brasileiro, mas filho do imigrante alemão Bernhard Diederichsen, egresso de Kiel; e os Bartsch desembarcaram por aqui em 1913, vindos da região da Bavária.
O marco dos 200 anos de imigração alemã, celebrado este ano – em Ribeirão Preto com uma exposição no Shopping Santa Úrsula com curadoria do consulado honorário da Alemanha –, nos lembrou o quanto a cidade seria diferente sem esse movimento, que começou em 1824. “A gente seguiu tendo outros momentos de fluxo imigratório que, coincidiram com as guerras mundiais na Europa [Primeira, 1914-1918; e Segunda, 1934-1945]. Muitos imigrantes vieram para cá fugindo delas. E um último fluxo imigratório, mais recente, teve a ver com nosso processo de industrialização. Estou falando de 1950, com Juscelino Kubitschek, em que temos a vinda de várias indústrias e empresas para o nosso país”, explica o cônsul honorário da Alemanha em Ribeirão Preto, Daniel Malusá Gonçalves [foto ao lado].
De acordo com ele, esses fluxos rendem frutos – principalmente de natureza econômica, mas também cultural – até a atualidade. “Uma coisa justifica muito essa celebração: o Brasil é, para a Alemanha, o único parceiro estratégico na América Latina, assim como a Alemanha é, para o Brasil, o principal parceiro comercial na Europa. Costumamos dizer que o Brasil é a maior indústria alemã fora da Alemanha”, diz Daniel. Afinal, são mais de 1.600 empresas ostentando a bandeira alemã no país e pouco mais da metade está no Estado de São Paulo. “Na região de Ribeirão Preto temos algumas importantes. Cito, por exemplo, o grupo Alliage, que congrega a antiga Gnatus junto com a Dabi Atlante. Originalmente, tínhamos a parceria Henk-Zanini – hoje Zanini-Henk. Temos ainda a Faber Castell, em São Carlos; a indústria de motores da Volkswagen, em Gavião Peixoto; a TGM, em Sertãozinho, entre outras”, lista Daniel.
Legado cervejeiro
Um legado tanto econômico quanto cultural, assimilado com particular entusiasmo pelo ribeirão-pretano, é o do turismo cervejeiro, que começou com a fama da Antarctica, lá pelas décadas de 1920, 30 e 40, e continuou com a entronização da cidade como “terra do chope”, graças à choperia Pinguim. Encontramos em Ribeirão Preto a segunda geração de um mestre cervejeiro que ajudou a construir tal fama.
Químico industrial atuante como tecnólogo e consultor cervejeiro, Carlos Antonio Hauser, 62 anos, nasceu ouvindo como seu pai, o mestre cervejeiro Carlos Oswaldo Hauser, nasceu dentro de uma casa funcional da Cervejaria Antártica da Mooca, na capital paulista, filho de outro mestre cervejeiro, Karl Hauser – alemão de uma cidadezinha próxima a Stuttgart que veio com a família para o Brasil entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Logo ao completar 18 anos, Carlos Oswaldo aceitou uma vaga de aprendiz como estagiário de cervejeiro, iniciando uma longa carreira que incluiu estadas na Alemanha para cursos na área. “Meu pai foi um dos primeiros brasileiros a conseguir essa certificação pelo governo da Bavária, em 1964. Até então não era dada a não-alemães”, conta Carlos-filho, orgulhoso.
Crescendo imerso neste universo, Carlos começou no Ensino Médio a fazer planos de conhecer o país dos avós. Antes, graduou-se em Química pela Unaerp e teve suas primeiras experiências profissionais, que incluíram – claro! – ser aprendiz de cervejeiro na Antártica. Paralelamente, fazia contatos com conhecidos na Alemanha, que lhe avisavam sobre oportunidades de trabalho. Quando surgiu uma de seu interesse, foi para lá com emprego arrumado. Morou em Augsburg (de 1992 a 1993), trabalhando na cervejaria Hasen Bruerei, e depois em Gräfelfing (1993-98), empregado da Coca-Cola. Tencionava ficar dois anos e ficou nove. Quando voltou ao Brasil, em 1998, foi trabalhar numa indústria de aromas e essências naturais para indústria de bebidas, mas logo passou a prestar consultoria para a Baden Baden, onde acabou contratado como gerente industrial em 2004. Ficou até 2007 e, desde então, teve vários outros empregos no ramo industrial de aromas e essências, mas continuou envolvido com o mercado, as pessoas e os produtos do mundo cervejeiro.
Outro que se mantém ligado aos antepassados alemães pela cultura cervejeira é o engenheiro agrônomo Raoni Sampaio Balieiro [foto à esquerda], 39, proprietário da cervejaria Walfänger, sediada em Bonfim Paulista. Sua trisavó materna imigrou para o Brasil no século 19 e seu tio-avô tcheco também foi cervejeiro da Antártica. Foram seus pais que primeiro tiveram a ideia de abrir uma cervejaria por aqui e com esse objetivo viajaram por países europeus em 2012. As cervejas que mais lhes encantaram o paladar eles tomaram em um monastério beneditino ao sul de Munique. Por lá entenderam que as cervejas estão para os alemães como o cafezinho para os brasileiros e ainda aprenderam sobre a Lei de Pureza Alemã, quase tão antiga quanto o descobrimento do Brasil – promulgada em 23 de abril de 1516, pelo duque Guilherme IV da Baviera, estabelece que a cerveja alemã deve ser fabricada apenas com três ingredientes: água, malte de cevada e lúpulo, para manter a qualidade e preservar a saúde. Voltaram para o Brasil decididos a fabricar cerveja alemã em Ribeirão Preto.
Raoni dá seguimento ao negócio fiel a tais princípios seculares. “Todo o perfil sensorial de nossas cervejas, por mais diferentes que sejam as receitas, não fogem à presença desses três ingredientes [da LPA]. É um estilo muito consolidado”, defende ele, que passou a visitar a Alemanha a cada dois anos para se atualizar sobre esse mercado. Sua próxima viagem será em novembro próximo, para receber um prêmio pela sua altbier, variedade típica da cidade de Dusseldorf. “Fizemos aqui e ganhamos deles lá”, orgulha-se.
Segundo o empresário, toda a matéria-prima da cervejaria familiar – com exceção do malte pilsen, que é parte alemão e parte nacional – é de origem alemã. “A maltaria que nos fornece é uma das mais antigas do mundo e fica em Mamberg [Baviera, Alemanha]. Nossos fornecedores são de uma colônia alemã situada em Guarapuava, no Paraná, formada por imigrantes alemães que fugiram da Segunda Guerra. Prosperaram tanto que hoje têm uma das maiores maltarias do mundo”, conta.
Para intensificar a vivência da cultura alemã por aqui, a família passou a promover uma versão local da tradicional Oktoberfest, que começou pequena, na rua da cervejaria, e hoje está na quarta edição.
Foragidos da guerra
Os avós de Rodolfo Mucha [foto à direita], empresário dono da Estância Fazendinha, em Barrinha, integraram aquele fluxo imigratório de famílias em fuga das guerras mundiais na Europa. Seu avô, Mathias Mucha, chegou com a família – a esposa, dona Augusta, mais quatro filhas e três filhos – em Santos, em 1935, vindos de Hamburgo, cidade portuária ao norte da Alemanha. “Deixaram tudo o que tinham lá, sítio e outras propriedades agrícolas, para fugir de mais uma guerra. Quando meu pai, Willy, que era o filho mais velho, foi convocado a se alistar, aos 16 anos, meus avós não tiveram dúvidas: venderam algumas posses baratinho e embarcaram em um navio para o Brasil, com medo e tudo. Foram 44 dias de viagem”, conta Rodolfo.
Por aqui a família foi trabalhar em fazendas de laticínios em Mogi das Cruzes e, após dez anos, mudou-se para Jundiaí, onde quase todos conseguiram se empregar em empresas de origem alemã. Só Wily, que ainda falava mal português, não ficou por lá. Ao saber que uma grande fazenda de café estava contratando, veio para a região de Ribeirão Preto, passando a trabalhar e morar no alojamento da fazenda Martim Prado (na região onde hoje fica Guatapará). Logo conheceu, em um sítio vizinho, uma família de suíços cuja filha, Alma, chamou sua atenção. Casaram-se – ele aos 24, ela com 18 – e ergueram a própria casa dentro da propriedade da família, na qual montaram uma horta para viver de plantar verduras. Rodolfo nasceu em tal sítio, em 1953, e cresceu trabalhando na horta com os pais, estudando em escolas de fazenda. A família deixou o sítio quando ele tinha 18 anos, no fluxo de um êxodo rural que levou vários trabalhadores e pequenos proprietários rurais da região a emigrarem para as cidades.
Em Barrinha, o jovem tentou trabalhar como motorista de caminhão, mas não deu certo. Passou, então, a trabalhar com o pai em montagens industriais, e quando conheceram um certo Arlindo Ribeiro Guimarães, mestre em valetamento de brejos, tornaram-se sócios e passaram a fabricar máquinas para drenar várzeas. Prosperaram e criaram a empresa Dragagem Barrinha, hoje com 40 anos de existência, mas não sem atribulações – chegou a ficar cinco anos fechada, por conta de uma crise, mas reabriu em 2019. Neste meio tempo, Rodolfo montou o hotel fazenda na área rural de Barrinha, que a esposa, Analice Frais Lieber – descendente de italianos e alemães –, passou a administrar. Sua fachada, aliás, remete à mais tradicional arquitetura alemã.
Com muito trabalho, Rodolfo e Analice criaram e formaram os dois filhos: Ana Paula Mucha Toneto, psicóloga hoje 35 anos, que já lhes deu dois netinhos; e Wily Matias, 42, formado mestre fluvial e em Administração Pública. Atualmente, Rodolfo cultiva o sonho de visitar o país de seu pai e avós e já deu o primeiro passo para concretizá-lo. Está contratando um administrador para o Hotel Fazenda e deixando a empresa de dragagem mais aos cuidados do filho, para que ele e a mulher possam fazer planos de viajar pela Europa. Querem se encontrar com suas raízes.
Na esteira do Pró-álcool
Para além dos fluxos imigratórios mais significativos apontados pelo cônsul Daniel Malusá Gonçalves, Ribeirão Preto seguiu acolhendo alemães que se apaixonaram pelo Brasil e por aqui ficaram. Entre eles está o professor e empresário Rudolf Schallenmüller, que foi cônsul honorário da Alemanha em Ribeirão Preto por 20 anos antes de se aposentar. Nascido em Munique em 1947, Rudolf formou-se lá em Filologia Alemã, História, Literatura Alemã e Ciências Políticas. Em 1971, conheceu a brasileira de ascendência russa Sônia Jecov, por quem se apaixonou à primeira vista [o casal, hoje, à esquerda]. Quando descobriu que ela morava em São Paulo, ficou mais encantado ainda, pois já cultivava a cultura brasileira. “Era um conhecedor profundo da MPB. Na Alemanha, ouvia grandes compositores brasileiros, como Chico Buarque, Tom Jobim, Milton Nascimento, entre outros cantores e cantoras”, lembra.
Sônia havia, literalmente, fugido da Ditadura Militar para a Alemanha em 1969, depois de seu namorado da época ter sido morto pela Polícia Militar, em São Paulo, por ser considerado subversivo. Ela e Rudolf começaram a namorar em 1971 e, em 1972 ele fez sua primeira viagem ao Brasil sem saber nada de português. “Ficamos na casa dos pais da Sônia, em São Paulo. Voltamos para a Alemanha e continuamos como estudantes pobres em Munique. Em 1976, voltamos ao Brasil para nosso noivado e retornamos à Alemanha para concluir nossas formações”, narra Rudi, como é mais conhecido. Começou assim uma história de amor que já dura 44 anos.
É verdade que o universo conspirou! Eles já estavam casados e com um filho de oito meses na Alemanha quando Rudi recebeu um convite para vir ao Brasil lecionar para filhos de funcionários alemães contratados nas empresas Henk-Zanini e AKZ Turbinas – alemãs que a partir de 1968 investiram na região de Ribeirão Preto na esteira do Pró-Álcool. “Imigrei já com mulher brasileira, um filho de colo e um contrato de trabalho muito bom! Com isso, pude fincar um pé econômico no Brasil”, conta Rudi, que não demorou nada a se adaptar, mesmo tendo chegado em plena Ditadura Militar. “O carinho da família da Sônia, os amigos que fizemos foram realmente mais fortes do que o lado político. E é muito importante que os imigrantes gostem do país para onde vão. Se eles rejeitam, nunca vão aprender a língua e ser felizes. Não sou músico profissional, mas um apaixonado por música clássica desde a infância, então acabei contratado também pela Faculdade de Música da USP para dar aula de ‘História da Música’. Fiz isso por oito anos”, narra o professor, que em seguida decidiu fundar seu próprio negócio: o Instituto de Ensino Brasil-Alemanha (IEBA), que até hoje ensina alemão em Ribeirão Preto.
“Fui muito bem aceito aqui. Trabalhei, ganhei um bom dinheiro e fizemos a nossa escola. Temos uma vida boa!”, afirma Rudi. Questionado sobre o que de melhor os imigrantes encontram no Brasil, ele cita a possibilidade de trabalhar, se realizar, progredir e educar os filhos. “O Brasil oferece um espaço nem sempre muito fácil, mas vejo que quem sabe trabalhar e tem uma formação está no país certo, vai prosperar! Isso é uma realidade histórica e pessoal”, conclui.
Por amor
Christiane Maus Martins [foto] também imigrou de Wuppertal, cidade na Renânia do Norte-Vestfália (Alemanha), por amor. Conheceu seu atual marido, o jornalista Dirceu Martins, quando “mochilava” pelo Nordeste do Brasil. “Tirei um ano sabático e fiz uma viagem ao redor do mundo com uma amiga. Encontrei o Dirceu em Fortaleza, na praia de Canoa Quebrada, e passamos duas semanas juntos. Ele voltou para São Paulo e eu continuei a minha viagem, mas mantivemos contato por cartas”, conta Chris. No ano seguinte, Dirceu viajou à Europa depois de terminar a faculdade, para conhecer parentes em Portugal e Espanha. Esticou até a Alemanha, onde reencontrou Christiane, e decidiu passar “um tempo” por lá. Ficou cinco anos. Em 1996, quando decidiu começar uma vida como jornalista no Brasil, Christiane veio junto, deixando sua família inteira – pais, irmãos e outros parentes – para trás.
Logo ao chegar, o casal se instalou em São Paulo. Christiane chegou com um diploma de enfermeira, que não conseguiu validar no Brasil, e sem falar português muito bem – se comunicava mais por inglês e francês. Começou a dar aulas de alemão enquanto Dirceu começava no jornalismo. Logo ele foi transferido para a EPTV Ribeirão e Chris veio junto. “Inicialmente foi difícil, principalmente pela comunicação. Era uma cidade menor do que é hoje, de interior, então pensei em ficar uns quatro meses e voltar para São Paulo. Mas logo passamos a ter uma vida social, conseguimos uma casa e depois vieram os filhos. E com os filhos veio a adaptação”, conta ela.
Profissionalmente, Chris também “se virou”. Começou a dar aulas de alemão e de inglês e a trabalhar como tradutora. Apaixonada por cavalos desde criança, aprendeu equoterapia e passou dez anos trabalhando com isso na fazenda Vassoural, com direito a participação em pesquisa da USP sobre o tema. Também atuou como secretária do cônsul honorário da Alemanha em Ribeirão Preto. “Ainda vou para Alemanha, mas Ribeirão Preto é a minha casa. Amo o Brasil. Tem um povo carinhoso, que torna fácil a gente se adaptar e conviver”, conclui.
Luan Porto