"Ninguém imaginaria que a gente mergulharia nesse abismo tão rápido", diz diretor de Bacurau sobre situação do Brasil

"Ninguém imaginaria que a gente mergulharia nesse abismo tão rápido", diz diretor de Bacurau sobre situação do Brasil

Em entrevista exclusiva para o Portal Revide, o diretor do filme Bacurau, Juliano Dornelles, discorre sobre a importância de conversar de arte e cultura em um evento como a Feira do Livro

*Colaboração: Enrico Molina

A Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto (FIL) recebeu, na tarde desta sexta-feira, 27, um Salão de Ideias com os diretores de cinema Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho. O tema do encontro foi “As utopias e distopias em Bacurau”, filme que os dois dirigiram e fez um grande sucesso de público e de crítica, conquistando prêmios internacionais.

Antes do evento, Dornelles deu uma entrevista exclusiva para o Portal Revide. Levando em conta o assunto abordado na feira, o diretor e roteirista falou da importância de conversar sobre arte e cultura, discorreu sobre suas utopias e também contou as semelhanças do longa com o Brasil atual.

De acordo com Dornelles, participar de um evento como a FIL e poder conversar com o público sobre o filme é sempre uma experiência incrível. “Isso porque conseguimos, ao mesmo tempo, falar de um trabalho que tivemos muita dificuldade, levou muito tempo para fazer e fizemos com muito carinho, com muito tesão. A gente consegue descobrir coisas novas sobre esse trabalho, sobre essa obra, sobre esse filho que a gente botou no mundo e que as pessoas chamam de outros nomes, enxergam de outras formas. Enfim, eu acho isso sempre muito rico e, se tem uma coisa que move qualquer artista, é estar em contato com o público que de fato está interessado em falar sobre um trabalho seu, é a melhor coisa. Falar sobre arte, sobre cinema, é sempre muito bom”, afirmou.

O diretor defendeu que a arte deve provocar e desafiar o espectador, assim como fez Bacurau. “Quando a gente estimula o pensamento, as indagações e os questionamentos, a gente contribui para a melhoria de uma sociedade. Eu acredito que a arte e a cultura funcionam no sentido de fazer as pessoas se movimentarem, encontrarem espaços onde elas não tinham entrado e conhecido antes. Quando elas estão aprendendo a andar em terrenos diferentes, a olhar para céus diferentes e a sentir temperaturas diferentes na pele, elas estão crescendo como indivíduos e conseguem exercitar a sensibilidade da aceitação do que é diferente, da compreensão do que é diferente, e eu acho que esse tipo de coisa é fundamental para a sociedade. A gente descobre as coisas e as pessoas quando se depara com a arte”, argumentou.

Utopias e distopias

Quando perguntado sobre suas utopias para o Brasil, Dornelles disse que o país passa por seu pior momento na história. “Vejo que a minha utopia não é uma utopia, não é pedir muito. Eu só queria poder voltar a um momento do país que a gente chegou a vislumbrar de perto a nossa democracia evoluir, se fortalecer, se solidificar. Isso em primeiro lugar. Em segundo lugar, começar a perceber as mudanças sociais que o Brasil vinha tendo e a diminuição da desigualdade, o tratamento igualitário entre pessoas diferentes, a inclusão de todos dentro do país, como uma sociedade. Isso não era uma utopia nesse momento tão bom que a gente viveu em um passado não tão distante. Para mim, utopia é voltar para aquele ponto histórico onde a gente podia pensar em um país que estava em uma rampa, subindo para uma constante curva de melhora. E hoje não se vê isso, a gente está sem esperança, está cansado, está deprimido. Estou em um momento que a gente está vivendo uma distopia. E utopia, quem sabe um dia?”, questionou.

Bacurau é um western que se passa no sertão nordestino, em um futuro distópico, no qual um povoado some do mapa. Os moradores estranham e começam a perceber a presença de drones sobrevoando a região e a chegada de estrangeiros. Quando a situação piora e pessoas começam a morrer, a comunidade se une para tentar resistir à opressão. Para Dornelles, a crítica social do filme se iguala a situações vividas no Brasil atual e em outros países. 

“A gente fez um filme que é uma ficção científica futurista e, no momento que estava escrevendo o roteiro, o Brasil era bem diferente. Um governo com essas características era basicamente algo muito impossível de acontecer, ninguém imaginaria que a gente mergulharia nesse abismo tão rápido. Mas escrevemos o roteiro, lançamos o filme e depois começamos a descobrir que o país – não só o Brasil, mas o mundo – chegou de várias maneiras em cenas e situações, em assuntos do nosso filme, que antes era uma distopia futurística“, afirmou.

Segundo o diretor, o longa apresenta ideias que refletem em fatos atuais do país. “Depois que o filme foi lançado, as pessoas se impressionaram muito com a ‘capacidade’ que tivemos de prever o futuro ou algo do tipo, e tanto eu quanto o Kleber sempre respondemos que, na verdade, o caminho para se explicar isso talvez seja não pensar tanto numa previsão de futuro, mas pensar que esse país repetiu muitos erros históricos e o que a gente fez em Bacurau foi tratar de alguns erros históricos brasileiros do ponto de vista de dois nordestinos, de duas pessoas que viveram no Nordeste a vida toda, e sabem de questões que seriam muito interessantes de colocar em um filme como esse, de gênero, de ação, um western. Resumindo, eu acho que a semelhança de Bacurau com o Brasil de agora está na tentativa de fazer um filme que falasse do Brasil e da história do Brasil, e infelizmente a gente precisa falar dos erros, das coisas feias, e elas se repetem”, ressaltou Dornelles.

O evento

Durante o salão de ideias, os diretores comentaram o início da parceria e suas impressões particulares da afinidade entre os dois. “Eu era leitor do Kleber quando ele era crítico de cinema no Jornal do Commercio, de Pernambuco. O tipo de humor que se identifica nos filmes dele, já estavam nos textos, então era muito divertido. Ele programava o cinema da Fundação, de Recife, e era um lugar que eu frequentava. E nos conhecemos no cineclube Barravento, uma vez em que ele foi convidado para apresentar o curta Enjaulado e nesse dia nós nos conhecemos e em seguida veio o convite, a partir de um grupo de amigos, para participar do Eletrodoméstica”, contou Dornelles. 

“Importante estabelecer que, não só no cinema, mas na música, no teatro, as pessoas se juntam a partir da amizade, que vem de você compartilhar uma visão de mundo. Seus amigos e amigas, em geral, são pessoas que compartilham sua visão de vida e tudo isso é matéria-prima pro cinema”, completou Kleber Mendonça Filho. 

Sobre a temática do Salão de Ideias “As utopias e distopias em Bacurau”, os artistas falaram sobre o que é uma verdadeira utopia e como a produção se insere neste contexto artístico. 

“Sempre nos preocupamos em não apresentar uma utopia, mas contraditoriamente é isso. Queríamos fazer um filme sobre uma comunidade de pessoas que nós admiramos e respeitamos, e por não sermos daquele lugar, do sertão, nós precisávamos de uma matéria mais legítima. Essa é uma das principais teses do filme desde o começo, de que as pessoas não são diferentes, são as mesmas coisas. Mas quando nós escolhemos conviver com elas, estamos construindo uma utopia, um ambiente onde vamos sofrer o mínimo, crescer, evoluir, se sentir seguros e amados, então é uma utopia, mas também não é, pois, falando de seres humanos as coisas nunca são perfeitas. Bacurau, pra mim, é uma busca pela utopia que foi interrompida", explicou Dornelles. 

“Nunca vi Bacurau como uma utopia, pois, seria como dizer que nosso grupo de amigos é uma utopia e não acho isso. As pessoas com quem nós dividimos uma visão de mundo e uma compreensão de sociedade, não acho que isso seja uma utopia, é plenamente possível. E do ponto de vista prático, Bacurau é uma comunidade com menos de 100 pessoas, então não é tão difícil imaginar que aquelas pessoas poderiam conviver em um certo acordo, um sistema de respeito. Não acho absurdo pensar nisso. Dentro daquele pequeno sistema marcado pelo desprezo, esquecidos pelo poder público, pelo governo, então eles precisam utilizar as próprias capacidades pra fazer aquilo funcionar do ponto de vista de legitimidade e de dignidade. E eles encontram maneiras peculiares de fazer funcionar”, finalizou o diretor Kleber Mendonça.


Foto: Divulgação - Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto

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