
Ela se encontrou no cinema
Prestes a iniciar a produção de seu 15º longa metragem, a cineasta Luiza Shelling Tubaldini fala sobre carreira, transição de gênero e como é fazer cinema no Brasil
Ela nasceu em São Paulo, mudou-se com a família para Ribeirão Preto com 4 anos de idade e desde os cinco lida com um “chamado interno” ao qual só atendeu há pouco menos de uma década: assumir a mulher que sempre foi mesmo tendo nascido, biologicamente, em outro gênero. Não foi o único chamado a exigir de Luiza Shelling Tubaldini um alto preço, pago na “moeda” da coragem. Por volta dos 24 anos, deixou um início bem-sucedido na advocacia sem saber ainda que outro ofício seguir. Na volta de um período sabático, em 2001, conheceu o produtor Edgard Castro e iniciou outra jornada – também muito bem-sucedida, obrigada! –, agora no cinema.
Hoje com 49, Luiza já produziu 14 longas metragens – entre muitos curtas –, dos quais também roteirizou e dirigiu quatro. Entre eles, o romantasy [gênero amor + fantasia] de terror “Love Kills”, estrelado por Thaís Lago e Gabriel Stauffer e inspirado na HQ homônima de Danilo Beyruth, de 2019; e o western “Marcha para o Oeste”, protagonizado por Nanda Costa e João Campos, ambos em fase de conclusão.
Neste segundo semestre, a cineasta começa a trabalhar em seu 15º filme: “Encontrada”, sequência de “Perdida”, ambos adaptados da saga de ficção romântica da escritora brasileira Carina Rissi, composta por seis livros – além dos dois títulos citados, inclui “Destinado”, “Prometida”, “Desencantada” e “Indomada”.
Ela fala um pouco sobre tudo isso na entrevista a seguir:
Como foi ter crescido em Ribeirão Preto?
Muito legal, porque você crescer numa cidade que não seja São Paulo é muito rico. E Ribeirão Preto, na minha época – e a gente está falando de 45 anos atrás –, era outra. Menor... Eu ia em cinema de rua. Minha vida cinematográfica começou no Cine Bristol, ao qual sou muito grata. Acho que o Cine Bristol é um patrimônio da cidade. Estudei no Santa Úrsula, depois no Anglo. Depois fiz faculdade de Direito fora de Ribeirão Preto.
Como descobriu que queria fazer cinema?
Desde criança eu sempre gostei. Só que para mim, naquela época, [trabalhar com cinema] era meio como ir para a NASA ser astronauta, sabe? Um negócio meio impossível. Tive uma jornada muito bem-sucedida como advogada, mas cheguei a um ponto, muito rapidamente, em que entendi que não era para mim. Daí fui fazer um período sabático e fiquei um tempo viajando, desconectada de tudo. E quando voltei para Ribeirão Preto, fui a uma palestra com o Edgar de Castro e o André Ristum respectivamente produtor e diretor de cinema com vínculos em Ribeirão Preto]. Ali comecei a tomar contato com a possibilidade de fazer cinema, porque o Edgard já era um grande produtor. Mal o conheci e pedi para ser assistente dele. Isso era 2001 e eu tinha 24 anos. Comecei a fazer os filmes com o Edgar, que é meu padrinho no cinema. Comecei como assistente de produção e fui crescendo: comecei a virar produtora associada, depois virei produtora, dali mais um tempo produtora-roteirista e, mais recentemente, comecei a dirigir. Atualmente, vou fazer, neste segundo semestre, meu terceiro filme como diretora.
Então seu rolê com o cinema sempre foi na prática, não é?
Fiz vários cursos no meio do caminho, mas acho que fazer cinema é muito como jogar futebol: é no campo, sabe? Eu acho, que sem dúvida, a parte teórica ajuda, orienta, mas é no campo [que se aprende a jogar].
Até porque deve-se lidar com muita coisa imprevista na produção de um filme, não é?
Sim. Ainda mais sendo produtora independente. Todos os meus filmes foram produções independentes. A gente não estava fazendo publicidade e nem prestando serviço para uma emissora. Então isso torna ainda mais desafiador você conseguir fazer algo em que tenha voz, em que a voz esteja com os artistas. Isso sempre me moveu muito.
Aproveitando, o que um produtor de cinema faz exatamente?
É um termo muito amplo, porque é usado quer seja para o assistente de produção, que também chamam de produtor, quer seja para quem exercita a chamada produção criativa, que é você imaginar um projeto, encontrar um roteirista para escrever esse projeto, encontrar um diretor para dirigir, montar as equipes todas, levantar o financiamento e depois comercializar esse filme. É como se fosse um incorporador imobiliário. Acho que é a correspondência mais próxima, porque é quem identifica um terreno, que corresponderia ao roteiro; identifica um arquiteto, que seria o diretor; levanta o dinheiro para construir o imóvel e depois ainda o oferece para venda. Isso é, em poucas palavras, a definição de um produtor criativo de cinema, no sentido amplo. O que acontece no Brasil é que, muitas vezes – muitas vezes mesmo –, os diretores são também produtores. Então essas duas funções ficam muito misturadas.
Isso é bom ou ruim?
Eu acho que é bom e é ruim. Por exemplo, em filmes de arte, eu acho que isso é muito bom, mas em filmes que têm uma certa pretensão de bilheteria, acho saudável ter uma voz questionadora, alguém do lado dizendo: "Veja bem... será?". Fazendo as perguntas difíceis, sabe? Eu acho que é uma soma interessante. Como o cinema é uma construção muito coletiva, acho que poder trocar, desde que seja com qualidade, eleva o conteúdo, eleva o filme, o roteiro, eleva tudo.
Quantos filmes já no currículo?
Essa é uma conta difícil de fazer. Eu geralmente considero só os longas. Não conto os curtas. Como assistente de produção do Edgard tem “Tempo de Resistência”. Depois “Sequestro”, “Marcha para a Vida”, “Qualquer Gato Vira-Lata”, “Operações Especiais”, “O Vendedor de Sonhos”, “Motorrad”, “Divórcio”, “A Princesa da Yakuza”, “Perdida” e “Visions in The Dark”. O “Love Kills”, que está quase pronto, é o 13º. O “Marcha para o Oeste” é o 14º. E esse que eu rodo agora, no segundo semestre [“Encontrada”], é o 15º.
Quais são os que você também roteirizou, além de “O Concurso” e “O Divórcio”?
“O Vendedor de Sonhos”, o “Motorrad”, o “Princesa da Yakuza”, “Perdida”, “Love Kills” e “Marcha para o Oeste” – esses dois últimos de forma muito presente. Estou escrevendo o próximo também.
Alguma dessas histórias tem a ver com a sua pessoal?
Nossa! Muitos deles. Em cada filme eu me encontro em um lugar, sabe? Em “O Concurso” eu me encontro muito. Em “O Divórcio” também. No “Love Kills”, que é de vampiros, também me encontro bastante. Este último, “Marcha para o Oeste”, que é um western rodado em Goiás, eu me encontro “pra caramba” em vários lugares. É difícil dizer, porque a gente está em tudo o que a faz, mas um pouquinho em cada lugar. Eu acho que a gente tem muitos “chapéus” que pode usar na vida. Tem uma definição de arte que me move muito, que é: “a arte é pegar a vida, passar por você e devolvê-la para a sociedade”. E isso eu acho tão rico, porque mesmo que você tenha uma participação pequena em uma obra de arte, em um filme, um livro que seja, um pouco de você está lá sempre. E vou te dizer mais: acho que todas as pessoas envolvidas, mesmo aquelas que aparentemente estão desconectadas da criatividade, tipo o motorista da equipe, se refletem no filme. Se o motorista não está bem, isso sai na tela.
Estamos descobrindo que tem muita gente fazendo cinema, atualmente, na região de Ribeirão Preto. O que acontece? Como você explica essa onda?
Olha, eu acho que tem muitas coisas que contribuem para essa resposta. Primeiro: até algumas décadas atrás, o cinema era um rincão muito fechado, até porque os meios de produção eram muito [mais] caros. Você precisava ter uma câmera 35 mm, ter acesso ao distribuidor, compreender a indústria... Então, a primeira coisa que permitiu isso foi o digital. Então, você imagina: um iPhone, hoje, filma em 4K. É um negócio inimaginável décadas atrás! Mais do que isso: de 2002 para cá, houve a criação de uma série de políticas que transformaram o audiovisual e deram muitas chances para gente nova entrar na área. E isso, sem dúvida, gerou um movimento plural no cinema, trazendo muitos cineastas do interior. Foi um oxigênio. Então, sem dúvida, eu diria que foram duas mudanças principais: a tecnológica, do digital, combinada a uma mudança nas políticas culturais de 2002 em diante.
Fale um pouco dos longas nos quais você está trabalhando neste momento. O que já puder adiantar, claro.
Claro. Eu posso contar um pouco, sim, mas muita coisa preciso guardar porque tem contrato que proíbe a gente de divulgar. O “Love Kills” está muito próximo de estar pronto. É thriller de terror e aventura de vampiros. E é uma história de amor de uma vampira que tem 5.000 anos e sabe tudo da vida, mas não sabe amar, porque a última relação dela foi muito difícil. Ela encontra um humano, um menino ingênuo, que sabe pouquíssimo da vida, mas sabe amar. É sobre como um vai transformar o outro. O outro é um western rodado em Goiás, ambientado na década de 1940, baseado em um fato real, chamado “Marcha para o Oeste”, que foi um movimento que o Getúlio Vargas fez para ocupar o centro-oeste do Brasil, que estava ficando vazio naquela época. É, basicamente, a história de uma mulher que quer ressignificar a vida dela e realizar o sonho de plantar. Uma mulher de origem simples, mas que tem um passado misterioso. E, claro, o filme é um pouco a luta dela com a natureza, porque plantar não é fácil. Plantar é uma arte também. E na segunda metade do filme o passado vem atrás dela. E no meio disso tudo ela tem um filho. No “Love Kills” estou fazendo uns ajustezinhos de som e cor que faltaram. Do “Marcha para o Oeste” estou começando a edição ou montagem, então vai ainda um tempo. Estou assinando como diretora, produtora e roteirista dos dois.
E como dá conta de fazer os três?
Tem parceiros, né? Por exemplo, eu escrevi “Marcha para o Oeste” com o Pablo Padilla. “Love Kills” escrevi sozinha, mas tem um monte de gente ajudando com trocas de ideias, consultoria, etc. Mas quando você está na produção independente, que geralmente é uma produção mais autoral, você vê muito isso acontecer. O próprio André Ristum, que é um cineasta Ribeirão Preto de muito sucesso [nasceu em Londres, Inglaterra, mas sua família é da cidade], escreveu quase todos os filmes que dirigiu. Eu vejo com naturalidade. Mas você tem razão [em perguntar]: isso pede um comprometimento de energia e de tempo brutal, porque vira um filho. Seu trabalho e seu olho estão em todas as fases dele. Mas a gente tem uma equipe muito alinhada e isso faz diferença. Sabe aquele monte de créditos ao final do filme? Cada nome daqueles é fundamental! Acho que isso é um reconhecimento muito importante de ser feito, porque equipe é tudo em cinema. É a diferença absoluta entre você avançar e conseguir chegar a um resultado interessante ou não. É determinante, eu diria.
E o público está descobrindo o cinema brasileiro cada vez mais. A que você atribui isso hoje e como foi fazer cinema quando a realidade era outra?
Então, eu tive alguns filmes no Top 10 nacional de cinema e, claro, ter começado com um homem com a cabeça do Edgard me ajudou muito, porque ele sempre teve uma visão muito preocupada com o público. Eu também tive. A questão é que o público muda e você precisa acompanhar. Por exemplo, se você exibir filmes que nos anos 1990 foram sucesso, hoje não é garantia de sucesso mais. Em cinema tudo é uma fotografia do momento. Tem um termo alemão, que é Zeitgeist, que significa “o momento em que a gente está”, o “ar do momento”, o “espírito do momento”. Você tem que estar muito sintonizado com isso para poder produzir e conseguir escrever de uma forma que o público embarque com você nessa história. E isso é um exercício de alquimia mágica, tá? Quem disser que domina isso está mentindo, porque às você faz tudo certinho e não acontece. E às vezes acontece. É uma alquimia imperscrutável. Acertar no público depende de muitos elementos fora do nosso controle, na verdade. O que você precisa, sem dúvida, fazer é começar com um bom filme.
É sempre com emoção então...
Sim, sim... não tem a opção “sem emoção” nesse negócio [risos]. E o público tem uma coisa curiosa, porque ele não só muda porque as pessoas amadurecem, se transformam, gerações novas vêm, mas a forma de consumirem muda. Você vê: a pandemia mudou muito a maneira de se consumir audiovisual. O streaming ganhou muita força. O cinema [no sentido de sala] está sendo destino para um tipo específico de filme. Antes, todos os filmes iam para as salas de cinema. Hoje em dia alguns vão para o cinema, outros para o streaming. É toda uma mudança industrial capitalizada pela pandemia, mas que já vem acontecendo tem um tempo. O ingresso ficou caro também. Tem muita coisa que interfere nesse processo. Mas vou te dizer: me move muito fazer filme para cinema, sabe? Poder mirar nas salas de exibição.
Agora entrando em um terreno mais pessoal: você assumiu-se como mulher trans já trabalhando na indústria. Como foi e como está sendo administrar as relações nesse ambiente, em que as pessoas a conheceram antes de você sequer iniciar a transição?
Olha, essa é uma pergunta muito interessante! Eu diria para você: “com muita naturalidade e com muita tranquilidade”, na verdade. Eu sinto que, na medida que você encontra as pessoas pessoalmente e se apresenta, tudo se esclarece, sabe? Claro, tem exceções aqui ou ali, raras exceções, mas entre o que as pessoas imaginam e o encontro pessoal... a troca pessoal tem uma energia que fala por si só, na verdade. Tem uma energia que fala por si mesma. Então eu diria para você: está sendo muito interessante, muito natural esse processo.
E para você, internamente, como foi passar transicionar sob mil olhares?
Olha, é um chamado interno que eu tenho desde 5 anos de idade e que eu só pude realizar há menos de uma década atrás, quando fiz a transição. E eu diria para você que é muito bonito, porque é um encontro de você com você mesma. E eu acho que você ser você mesma não tem preço! A gente poder exercer a própria natureza é um fato gerador de uma felicidade difícil de escrever até. Você, de repente, descobre... não é “descobrir” o verbo correto, mas você [se dá conta de que] está no lugar certo. Eu acho que isso vale para qualquer mudança na vida, não só para as de gênero, que é o meu caso. Às vezes, você reciclar uma relação ou mudar de emprego, tomar uma decisão corajosa na sua vida, que você sente que é verdadeira e autêntica para você, é muito bom!
Acha que isso se reflete na sua maneira de trabalhar?
Muito, muito, muito... reflete muito.
De que forma, por exemplo?
Na medida em que você está em contato com sua autenticidade, tudo se transforma ao seu redor. Tudo o que você faz ganha um sabor conectado com a sua verdade. Tudo, tudo, tudo, para além do cinema, sabe? Até na maneira de cozinhar. E você estando na sua verdade, é transformador. Tem aquela frase cristã: “a verdade vos libertará”. Acho que se encaixa no meu caso. Você estar atuando dentro da sua verdade a coloca em um lugar em que você vira capitã da sua vida e do seu coração.
Recentemente ouvi do filósofo e professor Clóvis de Barros que a arte é o maior/melhor recurso de que dispomos para suportar a vida, que tem muito mais dores do que prazeres. Esta é definição de arte que funciona para ele, mas cada um tem uma que funciona mais para si. Qual é a sua?
Engraçado que você falar isso, porque eu estava discutindo isso na semana passada com amigos e daí uma pessoa falou uma frase que me moveu muito na linha do que o Clóvis falou: que a vida não é sobre dor ou prazer, alegria ou tristeza, mas sobre busca de equilíbrio. E isso é tão interessante! Eu acho que a arte, inclusive, cura. Às vezes você assiste a um filme, entende uma relação e traz aquilo para a sua vida. E você fala: "Nossa, uau! Que maneira interessante de olhar". E às vezes isso te faz soltar tantas coisas... E te faz se curar no processo. Isso eu acho que é muito bonito! E vou te dizer: às vezes, no entretenimento mais barato existe uma coisa mágica. E às vezes esse entretenimento mais barato é a porta para o entretenimento médio e que talvez leve a um mais sofisticado e refinado, que, em algum momento, vai levar para essa cura. Acho que, desde que circule, o consumo da arte é muito importante, porque a gente precisa ter isso na nossa vida. É um oxigênio mesmo e é muito bom!
Gostaria de acrescentar algo mais?
Talvez possa ser legal eu te contar que é muito bacana ver novos cineastas vindo de Ribeirão Preto. Isso é uma forma de oxigenar o cinema, até porque é uma forma de trazer novos olhares. Trazer vozes de lugares diferentes, de cidades diferentes, pode forjar uma perspectiva que, talvez, a gente não tenha pensado. Porque eu acho que a arte tem muito isso: um lado questionador, de mostrar outra perspectiva. Nesse sentido, é a pluralização do cinema. Você ter vozes vindas de outros lugares é muito importante.
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