Preparo para um Mundo Novo

Preparo para um Mundo Novo

Cofundador de igreja daimista em Ribeirão Preto, Orlando Cardoso fala sobre espiritualidade e sustentabilidade

“Sou um caipira nascido na capital”, descreve-se o jornalista e cofundador da igreja daimista Rainha do Céu, de Ribeirão Preto, Orlando Cardoso, figura-chave na formação de uma comunidade autossustentável no Sítio São Jorge, na zona sul do município, com apoio do Instituto Nova Era.

 

Nascido em São Paulo em abril de 1979, Orlando passou a primeira infância na pequena São Manuel, no interior do Estado, em família católica. Aos 10 anos de idade, foi enviado para estudar no colégio interno dos Irmãos Maristas, na capital. Aos 15, começou a trabalhar no extinto jornal Diário Popular, como operador de telex – equipamento antecessor do fax, que enviava e recebia mensagens telegráficas via eletricidade – em pleno ano do golpe militar no Brasil (1964). Ele conta que passou apenas um mês separando por tema as notícias que chegavam de agências pelo telex. “Um dia precisaram de um repórter, me puseram para fazer uma matéria e gostaram do meu texto. Fiquei”, lembra. Foi o início de uma carreira de mais de 30 anos trabalhando em veículos como Folha de S. Paulo, Globo, TV Bandeirantes, Tribuna da Bahia e Jornal do Brasil.

 

Orlando até iniciou faculdade de Administração de Empresas na Fundação Getúlio Vargas – época em que cobriu muito o movimento estudantil –, mas não concluiu. Em 1967, quando a Ditadura Militar recrudesceu, foi avisado pelo colega de redação na Folha de S. Paulo, Claudio Abramo, que estavam ambos em uma lista de 200 nomes de jornalistas na mira do regime. Enquanto muitos intelectuais na mesma situação buscaram exílio no exterior, Orlando se autoexilou em um sítio às margens do rio São Francisco, onde passou a viver com a segunda mulher – foi casado três vezes – de agricultura orgânica. Foi por essa época que teve os primeiros contatos com a doutrina do Santo Daime. Entre aquele momento e o atual, em que ele prega uma vida comunitária voltada para a espiritualidade e a regeneração ecológica, tem muita história. O próprio Orlando conta uma parte dela na entrevista a seguir:

 

Qual você considera sua atuação mais importante no jornalismo?

Na revista Planeta comecei a me envolver com o que considero o meu trabalho mais interessante, que é estudar a história esotérica do Brasil. Juscelino Kubitschek é a peça-chave. Começa com a história de Dom Bosco, que nunca pisou no Brasil, mas escrevia profecias sobre o país. Brasília existe por causa de uma profecia dele. Bibliotecário do Vaticano, ele ficava enfurnado na biblioteca e de vez em quando tinha febres. Com as febres ele tinha visões, sobre o Brasil a maioria. Foi como ele deu a localização de onde deveria ser a capital do país. Essas informações bastaram para a Maçonaria, que as encaminhou à princesa Leopoldina, que era maçom. Ela as repassou a José Bonifácio de Andrada e Silva (secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros à época do Brasil império), também maçom. E como foi Dom Pedro quem fez a primeira Constituição brasileira, por influência de Leopoldina e José Bonifácio, entrou nela que a capital federal tinha que ser entre os paralelos 15° e 20° da Terra, onde hoje fica Planaltina (cidade satélite de Brasília). Brasília acabou ficando um pouquinho mais adiante, a 15 km do local marcado na profecia de Dom Bosco. Hoje, o que está lá é o Vale do Amanhecer, maior centro mediúnico do Ocidente. O local de Brasília foi mudado por causa da bacia do rio São Bartolomeu. Foi ali que Juscelino Kubitscheck pousou o avião quando foi atrás de conhecer o marco de Dom Bosco. Quando perguntaram a ele por que ia tirar a capital do Rio de Janeiro e construir no meio do nada, ele falou: “só estou cumprindo a Constituição”.

 

 

Como você chegou à corrente daimista?

Pela via do psicodelismo. Na história do Brasil da resistência à Ditadura, quem não pegou em armas, a opção que surgiu foi o psicodelismo. Isso era década de 1970. Foi quando surgiu o movimento alternativo, os hippies, a palavra “hippie” inclusive. E o Daime tem tudo a ver com isso. É uma planta de poder [como são chamadas plantas alucinógenas utilizadas em contextos de autoconhecimento ou ritualístico, religioso ou espiritual], como é o peiote, a folha da coca e a maconha. Planta de poder promove uma alteração de sua percepção. Potencializa.

 

 

Qual o objetivo da doutrina daimista?

O uso do chá é uma busca da cura espiritual e física. Os rituais são feitos através de cantos que invocam espíritos curadores e provocam projeções em um campo mais sutil, que a gente chama de campo astral. Nesses mais de 30 anos em que participo, assisti e sou testemunha de várias curas. É um chá de origem inca e tupi, que chegou até nós através do Vale do Juruá, no Acre, que é a parte mais ocidental do Brasil, pertinho dos Andes. Ali existem 12 etnias indígenas, todas elas ayahuasqueiras. Os incas desciam dos Andes e iam colher o cipó e a folha na Floresta Amazônica. A mistura do cipó e da folha se denomina ayahuasca [planta da qual se faz o chá do Daime]. Estão encontrando agora uma série de marcas no desmatamento do Acre, descobrindo verdadeiros sítios arqueológicos onde eram feitos os rituais do chá dos povos primitivos. Daí que vem a ayahuasca. No início do século 20, ele foi cristianizado através do mestre Irineu, que era um negro de 2 metros de altura, maranhense, que foi para o Acre como soldado da borracha. Em suas incursões pelas matas, ele teve contato com os índios ayahuasqueiros e começou a fazer uso da bebida. Aí teve um chamado divino e cristianizou a ayahuasca. Ele passou a chamá-la de Daime, no sentido de “me dê” – me dê a luz, me dê a cura. Essa corrente começou aí. O primeiro hino dele é em louvor à Nossa Senhora da Conceição. Então o Santo Daime é uma doutrina totalmente cristã. Todos os santos da igreja católica são louvados. Jesus Cristo e Nossa Senhora são as entidades máximas da doutrina.

 

 

O que mais atraiu você para ela?

Existem duas correntes do Daime no Brasil. Tem a União do Vegetal (UDV), que é um grupo de poder com características de maçonaria, fechado, formado por militares de alta patente, empresários de nível internacional e altos executivos. Eu, depois daquela história com o Cláudio Abramo, ao invés de me exilar fora do país, me exilei para dentro. Fui viver na beira do rio São Francisco, em uma terra que minha esposa à época tinha herdado dos pais. Aí um amigo meu entrou para a UDV e passou a me levar para Brasília para tomar o chá. Foi lá que, em um ritual, estive com minha avó, então falecida há muitos anos. Ela me disse o que ia acontecer com meu pai, filho dela, e até mostrou cenas. Meu pai ia entrar numa crise matrimonial, se separar, enfim, viver um drama familiar. Foi como se eu estivesse conversando com o espírito da minha avó assim como nós dois estamos conversando aqui. Logo depois, começaram a acontecer as coisas que a minha avó antecipou. Então me convenci de que eu estava diante de um poder sobrenatural e aquilo me interessou. Estou até hoje.

 

 

Como você vivia às margens do rio São Francisco?

Da agricultura orgânica, que faz parte da cultura psicodélica. Tínhamos uma horta e cultivávamos fruticultura. Abracei essa coisa da natureza. Mas voltei para o jornalismo assim que o presidente José Sarney tomou posse. O João Santana Filho assumiu a chefia de reportagem da sucursal de Brasília do Jornal do Brasil e me chamou para apurar crimes militares. Até hoje eu trabalho com jornalismo, mas como free lancer.

 

 

Como você chegou a Ribeirão Preto?

Através do Pelicano (conhecido cartunista ribeirão-pretano, já falecido), meu primo querido. Eu vim aqui ficar com a mãe dele. Toda a minha história do Daime tem a ver com o irmão dele, o Glauco (também cartunista que marcou época nos jornais brasileiros), que morou comigo muitos anos. A gente não se desgrudava. Eu e o Glauco começamos com a história do Daime em São Paulo e passamos a fornecer para o Pelicano. E ele abriu essa igreja aqui, que hoje está lá no Sítio São Jorge, a igreja Rainha do Céu, que está fazendo 30 anos. É uma igreja cristã, não necessariamente católica. Mas o Daime é bem próximo do catolicismo porque usa todas as rezas, todos os rituais, cultua os mesmos santos, respeita o mesmo calendário: São João, São Pedro, Santo Antônio, Natal. Os rituais são realizados com intervalo de 15 dias, no máximo. Todo dia 15 e 30 de cada mês tem um trabalho que a gente chama de concentração. Depois tem os trabalhos oficiais, que são em datas cristãs. O último foi de Nossa Senhora da Conceição, em 7 de dezembro. Na concentração se canta os mesmos hinos e tem uma parte em silêncio, porque é um trabalho de introspeção. Aí tem as festas, que são nas datas religiosas. Uma concentração dura de quatro a cinco horas. As festas são 12, 16 horas de cânticos e bailados.

 

 

E qual a ligação entre a comunidade do Sítio e o Daime?

A criação dessa comunidade tem tudo a ver com o Santo Daime, que surgiu com o mestre Irineu, esse maranhense lá de Rio Branco. Chegou até ele um acreano bastante doente que se curou no Daime – o Sebastião, que hoje a gente chama de padrinho, porque ele foi o grande expansor da doutrina. O padrinho Sebastião resolveu juntar um povo, sob as bênçãos do mestre Irineu, para formar uma comunidade no meio do mato, isolada totalmente. Foi aí que começou a história do Mapiá (Vila Céu do Mapiá, fundada em 1983 por Sebastião Mota de Melo), que conseguiu juntar dezenas de famílias seguidoras do Santo Daime para morar no meio da floresta mesmo, construir uma vida comunitária. Esse é o modelo que a gente quer seguir aqui. Hoje, o Daime tem igreja no mundo todo, mas esse tipo de comunidade só tem no Mapiá e em Visconde de Mauá, onde é comandada pelo Alex Polari. Lá se vive da terra, da agricultura e do artesanato. É o que a gente quer fazer aqui também, criar essa vida comunitária, porque a gente acredita que está vivendo um período de transição fortíssimo para uma vida mais equilibrada com a natureza.

 

 

O que vem a ser essa transição?

Essa é a parte que eu mais gosto. Estamos em uma transição de era, saindo de um período de 10 mil anos da era de Peixes e entrando no período de 10 mil anos da era de Aquário. O Instituto Nova Era tem a ver com essa nova era que deve ser construída. É um exercício. O que a nossa comunidade se propõe é ser autossuficiente. A gente está em busca de ter energia própria, combustível próprio, alimentação própria, remédio próprio e todas as implicâncias sociais que esse viver comunitário envolve.

 


“Eu acredito piamente nisso: um único povo, numa única Terra, sob um único céu”, afirma Orlando

 

Já tem quantas famílias vivendo nessa comunidade?

Por enquanto não tem [pessoas vivendo em tempo integral]. Eu, por exemplo, estou na cidade porque minha filha, que é puxadora – a pessoa que canta os hinos nos rituais do Daime –, está fazendo faculdade em Ribeirão Preto. Tem muitas famílias participantes do projeto que vivem na cidade, têm emprego normal e pretendem ir definitivamente para lá um dia. Então é uma transição para nós também. Tanto no Mapiá quanto em Mauá, muitos já conseguiram e estão vivendo plenamente essa proposta. Nós estamos ainda no início. Este ano montamos uma casa de farinha no sítio. A gente já planta mandioca e feijão todo ano. Quer dizer, com feijão e farinha já dá para sobreviver sem morrer de fome [risos].

 

A ideia é todos viverem do que plantam e colhem?

Sim. A ideia é essa, de buscar meios de estar à parte da crise planetária.

 

Os espíritas acreditam que o planeta Terra passa por um período de transição, de mundo de Expiações e Provas para mundo de Regeneração. Tem a ver com isso?

É isso sim. Somos todos kardecistas também, como somos católicos – cristãos. Na religião católica, o único ponto com o qual a gente não concorda é a falta do conceito de reencarnação. Somos reencarnacionistas. O exercício que a gente pratica sob efeito do chá também é uma busca da memória ancestral. Você vai desenvolvendo ao longo dos anos para se lembrar de vidas passadas. Eu mesmo sei de vidas passadas minhas.

 

Mas se reencarnamos sem memória de vidas passadas não é porque não temos que saber? Ao menos esse é o entendimento de muitos espíritas.

Eu acho que a gente tem que saber. Acho que é fundamental saber. O que isso ajuda você...!

 

Em quê?

Ancestralidade. A maneira de você se identificar melhor como espírito. Não somos apenas essa persona formada nesta encarnação. Somos mais. Essa persona não pertence ao espírito, só faz parte dele. É um elemento, mas não a coisa toda. Não sou o Orlando para todo sempre. Quando eu era menino, meu pai comprou a Enciclopédia Britânica. Lembro que da escola eu ia correndo para casa, me trancava no quarto e pegava um volume da Enciclopédia que falava da Segunda Guerra Mundial e abria numa foto específica, que era de três samurais bebendo saquê, com os aviões ao fundo, antes de partirem para uma missão suicida. Eu ficava horas vendo aquela foto, que me tocava profundamente. Daí, muitos anos depois, eu estava entrevistando a tia Neiva, que é a fundadora do Vale do Amanhecer [movimento religioso sediado em Planaltina, Brasília], quando, no meio da entrevista, ela teve um insight espiritual. Falou que em minha vida passada eu era um piloto kamikaze, que morreu aos 33 anos de idade. Na hora em que ela falou isso, me projetei imediatamente para o meu quarto da infância, para aquela foto e aquele sentimento de nostalgia. E tinha um gosto específico que vinha à minha boca muito forte. Foi tão forte como a experiência que tive com minha avó.

 

É através dessa investigação ancestral que o Daime proporciona curas?

Não, não. Porque você pode não ter recordação nenhuma com a experiência do Daime. Se você não está buscando isso, não vai achar. Mas proporciona cura física mesmo, de algum mal que você sofra. Eu vi várias pessoas que acreditaram que iam se curar se entregarem ao uso ritualístico do chá e alcançarem a cura.

 

Como você acha que será o homem desse mundo para o qual estaríamos transicionando?

Será simplesmente um terráqueo. Acabam as distinções entre preto, branco, amarelo, as fronteiras entre os países... Eu acredito piamente nisso: um único povo, numa única Terra, sob um único céu. E o único país que agrega todas as raças do mundo é o Brasil. Não tem outro que tenha tão marcante a mistura das raças. A concepção do terráqueo começa aqui.

 

E esse modelo de comunidade que vocês estão criando é o que vai prevalecer nessa nova Terra?

Isso não posso dizer. Esse modelo eu acredito que ajuda na questão social e espiritual, para que possamos viver uma vida de irmandade, em comunhão com a natureza, com valores elevados, que não são os de uma sociedade capitalista, mas uma coisa mais fraterna. Nosso modelo, no momento, eu vejo como uma possibilidade de amparo, de resguardo de quem não quer mais entrar na competição do mundo lá fora. É uma escolha de vida para agora, que prepara para o que virá.

 

E essa escolha é incompatível com a civilização como conhecemos hoje, com toda a tecnologia e progresso científicos tão desenvolvidos?

Não é incompatível. Todo esse progresso e tecnologia vão permanecer. O que vai mudar é o uso que vamos fazer.

 

Como vocês comemoram o Natal na igreja Rainha do Céu?

Mesmo ritual de passar a noite inteira cantando e bailando até o sol raiar. A gente canta o hinário do mestre Irineu. Somos uma doutrina cristã! E Natal é o dia do nascimento do nosso senhor Jesus Cristo. Ele é o grande chefe da humanidade. A gente sabe que é e acredita nele. Então é a nossa data mais importante. E Jesus Cristo é a entidade mais importante do nosso sistema.

 

 


Foto: Luan Porto

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