A vida continua

A vida continua

A médica geriatra Fernanda Ferronato de Souza compartilha a experiência que viveu com a filha Clara, que precisou de um transplante de rim; objetivo é conscientizar a população

O Brasil é o segundo país do mundo que mais realiza transplantes (atrás apenas dos Estados Unidos), tratamento disponível para toda a população por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde, em 2021, foram feitos cerca de 23,5 mil procedimentos. Desse total, cerca de 4,8 mil foram transplantes de rim, 2 mil de fígado, 334 de coração e 84 de pulmão. Para algumas pessoas, o transplante de órgãos pode ser única esperança de vida e essa chance de recomeçar só acontece a partir de uma doação. Os órgãos doados vão para pacientes que necessitam de um transplante e estão aguardando em uma lista de espera única, organizada por estado ou região, e monitorada pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT). 


No país, a doação é realizada somente após a autorização familiar e é justamente esse fator que vem impedindo o crescimento das estatísticas. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), 43% das famílias recusaram a doação de órgãos de seus parentes após morte encefálica comprovada em 2021. Em 2022, mais de 45% das famílias não concordaram com a doação. Atualmente, cerca de 60 mil pacientes aguardam na lista. Por isso, é tão importante promover a conscientização sobre o tema.


Talvez, uma das formas mais assertivas de mostrar a grandiosidade desse ato seja por meio do depoimento de alguém que teve a vida transformada por ele. Foi com esse pensamento que a médica geriatra Fernanda Ferronato de Souza aceitou compartilhar a experiência que viveu com a filha Clara. Hoje com três anos, ela é pura felicidade ao lado da mãe, do pai, o médico cardiologista Felipe Fontes Batista de Souza, e do irmão, João. Essa realidade só foi possível graças à uma doação e um bem-sucedido transplante de rim. Na entrevista a seguir, Fernanda lembra do diagnóstico, recebido ainda na gestação, as intercorrências e as intervenções logo após o nascimento, a busca por informações, a apreensão de estar na lista de espera e o impacto positivo que esse gesto de amor ao próximo, do doador e da família doadora, trouxe para toda a sua família. Confira:

 


Como você soube que a Clara precisaria de uma doação de órgão?

 

Ainda durante a gravidez, descobrimos que a Clara tinha uma doença grave, chamada hipodisplasia renal bilateral. Já nos primeiros minutos de vida, ela precisou ser levada para Unidade de Terapia Intensiva (UTI), com intervenções, cirurgias, cateteres, sonda e suporte avançado para continuar viva. Começou a diálise peritonial com apenas dois dias. O tratamento não teve sucesso e, então, iniciou hemodiálise diariamente. Desde o diagnóstico da doença, sabíamos que seria necessário o transplante para poder ficar sem a hemodiálise. Para entrar na fila de transplante, era necessário atingir 7kg e, por conta da insuficiência renal crônica, Clara apresentava desnutrição severa. O processo de ganho de peso foi demorado e difícil. Em agosto de 2021, com 1 ano e 8 meses, ela atingiu os 7kg e foi inscrita na Secretaria Nacional de Transplantes, na fila para doador falecido. Continuou em hemodiálise de segunda a sábado, enquanto esperava o transplante.

 

Quando aconteceu o transplante?

 

No dia 13 de março de 2022, aos 2 anos e 2 meses, a Clara recebeu o tão esperado sim de uma família para a doação de órgãos e renasceu. O transplante de rim, feito no Hospital Samaritano Higienópolis, de São Paulo, transformou a vida de uma criança que tinha um cateter central e não podia se molhar na piscina, não podia brincar na areia, não podia tomar banho livre de plásticos, não podia banho de mangueira ou de chuva. Depois do transplante, passou a poder fazer as coisas mais simples da vida. Esse sim mudou completamente a nossa vida. Paramos de ter que ir todos os dias ao hospital, pois ela passou a não precisar mais da máquina de hemodiálise que a mantinha viva.

 

Como a Clara está hoje?

 

Ela está bem. Ainda faz acompanhamento médico regularmente e irá fazer tratamento para o resto da vida. O transplante não é cura, mas é um tratamento que muda muito a qualidade de vida do paciente e da família. Nossa família renasceu através do transplante. Uma família que não conhecemos, em meio a dor insuportável de perder alguém, teve um gesto de amor que salvou a vida da Clara. Seremos sempre gratos.

 

Qual era o pensamento de vocês sobre o assunto antes de vivenciar essa experiência? Essa perspectiva mudou?

 

Quando recebemos o diagnóstico, busquei, sim, muita informação sobre doação de órgãos e transplante. Esse assunto é pouco falado, pouco divulgado. É superimportante que quem deseja ser doador avise sua família. Já sabia algumas coisas, por ser médica, mas, mudou muito a minha perspectiva estar do outro lado na fila, esperando. 

 

 

Acredita que ainda existe falta de conhecimento em relação ao tema? Talvez, até uma certa resistência em tentar entender essa questão?

 

Infelizmente, a doação de órgãos pode ser, ainda, um tabu para muitas pessoas. Além disso, ou por falta de conhecimento ou de informações, muitas pessoas acreditam, erroneamente, que existe tráfico ou compra de órgãos e, por isso, acabam descartando a doação. Isso não existe. A lista é extremamente organizada e rigorosa, funciona por compatibilidade através de exames de sangue e por tempo. Apenas pessoas com risco iminente de vida, que preencham certos critérios determinados, são priorizadas. Todas as demais aguardam na fila.

 


Como funciona o processo de doação?

 

Quando alguém, infelizmente, tem o diagnóstico de morte encefálica, que é a interrupção irreversível das funções cerebrais, a doação de órgãos faz se possível. Muitos parentes têm medo de decidir pelos familiares, não sabendo se era a decisão do mesmo em vida. Essa é a principal causa da recusa das famílias. Por isso, essa pessoa tem que, em vida, já ter manifestado seu desejo de ser doador de órgãos e avisar a sua família da sua decisão. A decisão é sua, mas são eles que vão dizer por você. Não é necessário nenhum documento, nada por escrito. Apenas o desejo de ser doador e a conscientização da família. Com a doação de órgãos, alguém que partiu possibilita até oito pessoas que aguardam na fila continuarem vivas. Famílias voltam a sonhar, a sorrir, a ter a possibilidade de viver mais alguns anos juntos depois da doação de órgãos. Hoje, para ser exata, 65.022 pessoas estão na fila de transplante, incluindo crianças e adultos. Para quem doa é escolha. Para quem recebe o transplante, é a possibilidade de continuar vivo.

 

Durante esse processo, o apoio dos familiares e dos amigos é fundamental?

 

Sem dúvida. A família foi essencial no processo todo, ainda mais porque, além de tudo, o João era muito pequeno. A Clara passou muito tempo internada e, depois, ia diariamente ao hospital para fazer hemodiálise. Precisamos e tivemos ajuda e acolhimento para superar esse momento de adversidade. Mas, queria ressaltar, também, o apoio que tivemos de pessoas que estavam passando pela mesma situação. Muitas coisas que só quem passa sabe a dimensão. 

 

Qual recado você daria para pessoas que podem, agora, estar vivendo a mesma situação que você viveu?

 

O tempo é o nosso maior aliado para voltarmos a sorrir e a sonhar.

 

 

E para as pessoas que estão se decidindo sobre a questão da doação de órgãos?

 

Avise a sua família da sua vontade de ser doador. Doe órgãos e salve vidas. 


Foto: Manuela Titoto

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