Doses de reforço contra a Covid-19 são necessárias por conta da evolução do vírus, alerta Butantan
Enquanto a 3ª dose indicaria que o esquema primário de duas doses não é suficiente, o reforço potencializa a imunização

Doses de reforço contra a Covid-19 são necessárias por conta da evolução do vírus, alerta Butantan

Instituto explica que a dose de reforço não era imprescindível em 2021, quando a imunização contra o coronavírus começou; hoje é essencial devido à mutação do vírus

Alguns meses após o início da vacinação contra a Covid-19 no Brasil, em janeiro de 2021, começaram a surgir boatos de que uma terceira dose seria necessária, e que isso se devia a uma suposta ineficácia da CoronaVac. A vacina do Butantan e da farmacêutica chinesa Sinovac foi a primeira a ser disponibilizada à população brasileira e iniciou o combate efetivo ao SARS-CoV-2 no país. Uma fake news dizia até mesmo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia expressamente recomendado a revacinação das pessoas que receberam a CoronaVac.

 

Em diversas ocasiões, o Butantan veio a público afirmar que não era necessária a revacinação, e que, naquele momento, também não seria preciso uma terceira dose contra a Covid-19.

 

A fase 3 dos ensaios clínicos da CoronaVac havia mostrado que o imunizante tem uma eficácia de 50,7% com um intervalo de 14 dias entre as duas doses, e de 62,3% com um intervalo de 21 a 28 dias – este último foi o prazo adotado majoritariamente no Brasil. Mais tarde, o Projeto S, estudo que vacinou toda a população adulta de Serrana, mostrou que a eficiência da vacina era ainda maior: no mundo real, ela comprovou queda de 80,5% dos casos sintomáticos de Covid-19 no município, de 95% das hospitalizações e de 94,9% das mortes. No município que foi sede da pesquisa, praticou-se o mesmo esquema vacinal: duas doses com intervalo de 28 dias.

 

“Há vários estudos que validam a excelente resposta da CoronaVac, inclusive para idosos. No começo, falavam que para essa faixa etária não teria proteção adequada e que se deveria usar outras vacinas. Novos estudos já mostraram que não, e que inclusive a dose de reforço da CoronaVac é tão eficaz nessa população quanto nas outras”, afirma a médica infectologista Fabíola Rocha Setúbal, que participou de ensaios clínicos ligados à Covid-19 e trabalhou com assistência médica aos pacientes impactados pela doença no Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília.

 

Em 2021, o Butantan se posicionou em defesa da universalização da vacinação primária, especialmente nos países em desenvolvimento, em detrimento da aplicação de uma terceira dose ou dose de reforço. Isso porque, na época, não havia imunizantes para todos. E, mais importante do que vacinar uma mesma pessoa três ou quatro vezes, era fazer com que toda a população completasse o esquema primário com a vacina que estivesse disponível – e, se fosse a CoronaVac, com duas doses. Afinal, aumentar a cobertura vacinal era a única forma de conter o SARS-CoV-2.

 

Vale lembrar que terceira dose é diferente de dose de reforço: enquanto a terceira dose indicaria que o esquema primário de duas doses não é suficiente, a dose de reforço potencializa a imunização depois de um determinado tempo, e responde ao declínio natural de imunidade.

 

Priorizar a democratização do acesso à vacina em detrimento das doses de reforço era uma defesa da própria OMS. “O objetivo primário atual de imunização na pandemia de Covid-19 continua sendo proteger contra hospitalizações, doenças graves e mortes. Portanto, doses de reforço podem ser necessárias apenas se houver evidência de proteção insuficiente contra esses desfechos da doença com o passar do tempo”, dizia um pronunciamento da entidade divulgado em outubro de 2021.

 

De acordo com a entidade, para recomendar as doses de reforço era necessário avaliar não só a queda de imunidade e a efetividade dos produtos, mas também a capacidade de fornecimento global de vacinas e a equidade na distribuição nacional e internacional. Naquela época, o mundo ainda não sabia, mas o SARS-CoV-2 desenvolveria um comportamento semelhante ao do vírus influenza: com mutações constantes, demandaria a aplicação de doses de reforço, talvez até mesmo anuais. E a chegada da variante ômicron, que no início de 2022 se tornou predominante em todo o mundo, cimentou essa estratégia. Em março daquele mesmo ano, a OMS passou a recomendar doses de reforço para a população em geral.

 

Por que a dose de reforço se tornou necessária para todas as vacinas contra a Covid-19?

 

Foram dois os motivos principais. O primeiro deles é que o acompanhamento das pessoas vacinadas mostrou que o nível de anticorpos protetores contra o SARS-CoV-2 no organismo humano diminui mais rapidamente do que o normal para outras doenças e vacinas. O segundo motivo é que o vírus foi mutando para evoluir, fazendo com que a proteção que se tinha antes passasse a não ser mais adequada – era preciso elevar o nível de anticorpos para que a imunização fosse eficaz contra as novas variantes.

 

“O sistema imunológico responde de maneiras diferentes para diferentes antígenos”, explica o pesquisador científico e diretor do Laboratório Multipropósito do Instituto Butantan, Renato Astray. A imunização contra o tétano, por exemplo, dura dez anos. Já a vacina da febre amarela protege pela vida inteira. “A queda acentuada, em que a imunidade não dura tanto tempo, é uma característica da interação entre o sistema imunológico e o vírus SARS-CoV-2 em especial", ressalta.

 

Em meados de 2022, os países desenvolvidos, onde a Covid-19 já estava controlada, voltaram a adotar medidas de restrição e passaram a recomendar uma dose de reforço. O mesmo aconteceu no Brasil. 

 

Fabíola Rocha Setúbal lembra como a grande dúvida dos cientistas, na época, era se as vacinas seriam eficientes para combater a nova variante, que tinha maior poder de transmissibilidade. “A ômicron chegou com a característica de conseguir burlar o sistema imune, inclusive de quem já tinha tido a doença ou completado o esquema vacinal primário”, detalha. Posteriormente, os números do mundo real mostraram que a vacinação foi capaz de segurar o avanço da ômicron.

 

Uma pesquisa publicada na revista Vaccines mostrou que a dose de reforço da CoronaVac aumenta o nível de anticorpos capazes de reconhecer a variante ômicron do SARS-CoV-2, além de fornecer resposta de células T específicas contra essa cepa. O estudo foi conduzido pela Pontifícia Universidade Católica do Chile e pelo Instituto Milênio de Imunologia e Imunoterapia. Foram analisados 186 voluntários que haviam tomado duas doses de CoronaVac e receberam o reforço da mesma vacina cinco meses depois. Com a dose de reforço, a capacidade de neutralização dos anticorpos aumentou ainda mais do que o valor observado 14 dias após a segunda dose do esquema completo.

 

“A dose de reforço protege, sim, contra a ômicron. Essa variante veio para validar o que a gente já sabia: que as vacinas são realmente efetivas e que, com o passar do tempo, até termos certeza sobre o papel da resposta celular [ou seja, a resposta imunológica que não pode ser medida pelos anticorpos e que se refere à memória das células], vamos seguir descobrindo a necessidade de reforços”, completa Fabíola.

 

Um conhecimento que chegou mais rápido do que o normal

 

A introdução de uma dose de reforço é um desdobramento que acontece sempre após o desenvolvimento e a aprovação de um imunizante. Uma vacina de três doses, por exemplo, é avaliada nos ensaios clínicos com três doses e aprovada pela agência regulatória para ser oferecida à população nesse formato. “A necessidade da dose de reforço aparece com o uso prolongado do medicamento ou da vacina”, aponta Renato Astray.

 

A indicação do reforço se baseia nos resultados do acompanhamento populacional ao longo de anos. Ou seja, é algo que se descobre na fase 4 de ensaios clínicos – a etapa em que os efeitos adversos e a eficiência de uma vacina são analisados a longo prazo, em um ambiente não controlado e em uma população de dezenas de milhares de pessoas. Ela acontece após a fase 3, que analisa a eficácia de um produto em um estudo controlado com milhares de pessoas. Com a Covid-19, todas as etapas dos ensaios clínicos foram aceleradas, dada a gravidade da pandemia, e a descoberta da necessidade do reforço chegou antes. “Você tem as pessoas que já foram imunizadas. Elas já estão na fase 4. A fase 3 foi rápida, aí já começou a fase 4, quando já vieram as variantes. Então todos os desenvolvedores ficaram de olho”, lembra o pesquisador do Butantan.

 

Atualmente, o Ministério da Saúde recomenda uma dose de reforço para pessoas a partir dos 5 anos e duas doses de reforço para indivíduos acima dos 40, que devem ser administradas após 4 meses da última dose. No estado de São Paulo, o segundo reforço é liberado para maiores de 18 anos, e um terceiro reforço é indicado para adultos com alto grau de imunossupressão. Até agora, porém, mais de 69 milhões de brasileiros ainda não tomaram a primeira dose de reforço. O esquema de vacinação primário, no entanto, permanece o mesmo: duas doses para a CoronaVac e as vacinas da Pfizer e da AstraZeneca, e dose única para a vacina da Janssen.

 

Nesses três anos de pandemia, os pesquisadores foram acumulando mais conhecimento e a comunidade científica já prevê que a Covid-19 veio para ficar. Também ficou claro que quanto maior o número de pessoas vacinadas, menos mortes a doença causa. Um estudo de modelagem matemática publicado na Lancet Infectious Diseases prevê que cerca de 20 milhões de mortes tenham sido evitadas no primeiro ano dos programas de vacinação nacionais. 

 

Por isso tudo, o Butantan reafirma: não era fake news dizer, em 2021, que não havia necessidade de revacinação ou dose de reforço. Naquela época, aplicar uma terceira dose em uma pessoa já imunizada significava tirar de outra a chance de iniciar seu esquema primário de vacinação – imprescindível para salvar vidas. No cenário atual, muito diferente de 2021, é preciso, sim, completar o esquema primário e receber a primeira e a segunda doses de reforço. “A medicina é muito dinâmica. Não existe nada fechado”, sintetiza Fabíola.

 

* Com informações do Instituto Butantan


Foto: Divulgação/Instituto Butantan

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