Prevalência de Transtorno do Espectro Austista tem aumentado globalmente
Na segunda reportagem de apoio à campanha Abril Azul, de conscientização sobre o Transtorno do Espectro Autista, destacamos a importância do diagnóstico na infância
Uma em cada 36 crianças aos 8 anos de idade é diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Brasil, segundo dados levantados pelo Monitoramento de Autismo e Deficiências do Desenvolvimento, do Centro de Controle de Doenças e Prevenção (CDC) dos Estados Unidos. Em todo o mundo, uma em cada 160 crianças tem TEA, de acordo com a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), braço da Organização Mundial de Saúde (OMS) nas Américas.
Estudos epidemiológicos realizados nos últimos 50 anos apontam que a prevalência de Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem aumentado globalmente. Pode estar contribuindo para isso um aumento da conscientização sobre o tema, a expansão dos critérios diagnósticos, melhores ferramentas para se chegar a ele, e o aprimoramento das informações reportadas, segundo a OMS. Mas, a julgar pelo volume crescente dos diagnósticos tardios em adultos, falta levar mais ainda mais informação e conscientização à população, para que as crianças no grau leve do espectro, hoje, não se tornem adultos com comorbidades de saúde mental amanhã.
Na primeira reportagem de apoio à campanha Abril Azul, de conscientização sobre TEA, a Revide mostrou como a falta de diagnóstico pode impactar negativamente a saúde mental de indivíduos no grau leve do espectro, cujos sintomas são mais fáceis de mascarar socialmente. Nesta segunda matéria, abordamos tudo o que os pais precisam saber para decidir se iniciam uma investigação diagnóstica nos filhos com sintomas, mesmo que leves, do transtorno.
Sintomas e diagnóstico
De acordo com o neurologista Renato Arruda, especializado em neurodesenvolvimento e seus transtornos, o autismo tem dois grupos de sintomas. No primeiro estão os chamados de déficits ou dificuldades de interação social. “A pessoa que tem muita dificuldade para iniciar ou manter um relacionamento pela dificuldade em comunicação não verbal. Este sintoma é comum no espectro, mas não é presente em 100% dos casos. A criança que é muito literal, levando tudo ao pé da letra, sempre no sentido denotativo, não conseguindo entender o sentido figurado, conotativo das frases e expressões. Também tem dificuldade de compreensão de pistas sociais”, explica.
O segundo grupo é formado por interesses restritos e comportamentos repetitivos. Nele pode haver – mas também não é regra – estereotipias, ou seja, movimentos involuntários, que geralmente ocorrem em momentos de maior ansiedade; hiper ou hipo sensibilidade a estímulos externos, como barulhos que incomodam muito; desconfortos sensoriais, como incômodos com corte de cabelo, uma textura da roupa ou etiqueta e o toque dos pés descalços na grama, por exemplo; interesses restritos e habilidades especiais. “É comum que venham crianças no consultório cujos pais contam: 'doutor, meu filho sabe todos os nomes de espécies de dinossauros. Tem ainda criança que aprendeu a ler sozinha, ou que fala duas a três línguas de maneira precoce, por exemplo”, descreve o neurologista.
Atualmente, os profissionais médicos mais habilitados para fechar o diagnóstico de TEA são neurologistas infantis ou que atuem na área de neurodesenvolvimento, além de psiquiatras infantis. “Tem tido também uma demanda maior por pediatras se especializando na área. Profissionais de Saúde da Família e médicos generalistas têm um papel importante de reconhecimento de sinais, mas não de diagnóstico”, esclarece Renato Arruda.
O diagnóstico do TEA é clínico, ou seja, depende exclusivamente da análise e avaliação pelo médico, a partir da coleta de informações. Além de observar a criança e conversar com pais, Arruda recorre a outros familiares e pede relatórios da escola e de terapeutas. “Muitas vezes os pais que chegam ao consultório já passaram por uma psicóloga, uma fonoaudióloga que viu atraso de linguagem e receberam um relatório da escola mostrando vários sinais. Às vezes eu peço uma avaliação interdisciplinar para ver a linguagem dessa criança (com a fonoaudióloga), a integração sensorial (com a terapeuta ocupacional), mas tem casos graves que a gente sabe de pronto", afirma.
Para a psicóloga Marcella Danza, o primeiro passo ao iniciar uma investigação diagnóstica para o espectro é fazer a avaliação de marcos de desenvolvimento da criança. “Para identificar o que está atrasado no repertório dela em cinco áreas: desenvolvimento motor, parte cognitiva, parte social, habilidade de vida diária e linguagem. Saber se a criança desde que nasceu não balbuciou nada, não tem contato visual com os pais, fica o dia inteiro no mundinho dela, tem movimentos repetitivos, etc, nos ajuda nessa identificação”, explica.
É TEA. E agora?
Fechado o diagnóstico, o primeiro passo é buscar as chamadas intervenções, que consistem em submeter a criança a terapias que visam a diminuir ou ensiná-las a lidar com os atrasos no neurodesenvolvimento. “Eu já falo para os pais que, quanto antes a gente iniciar as intervenções, melhor o desfecho para a criança", comenta Arruda.
A mais utilizada atualmente é a ABA (sigla do inglês Applied Behavior Analysis), que em português significa Análise do Comportamento Aplicada. Seu programa reúne terapias cientificamente comprovadas como eficazes para crianças com TEA. “Nesse tipo de intervenção, que é repetitiva, a gente condiciona a criança a se comportar de determinada forma. Por isso é a terapia mais indicada internacionalmente”, comenta Marcella, também especializada na técnica.
Outro passo importante é a orientação parental, que Arruda considera “fundamental”. “Significa treinamento dos pais e da família, porque há casos que encaminho para as terapias em que os pais entregam na clínica de manhã, pegam à tarde e acham que está tudo certo. Mas estudos mostram que, quando os pais estão engajados, podem aprender estratégias para aplicar dentro de casa com a criança. Isso é orientação parental e faz muita diferença!”, frisa.
Ambos os profissionais concordam que, se a família não se move com o mesmo objetivo, fica complicado para a criança e pode haver uma sobrecarga para um dos pais. “Inclusive, é muito comum o processo de separação de casais nesse contexto, porque essa ressignificação é difícil”, acrescenta a psicóloga.
Um luto
O diagnóstico de TEA não é fácil de receber pelos pais. O que a psicóloga mais ouve, principalmente das mães, é que a ele se segue um luto por uma expectativa que se tinha com o filho. “As mães falam que essa é a maior dificuldade. Elas passam a gravidez toda conversando com o bebê na barriga, eles nascem e elas continuam conversando com ele e, de repente, percebem que seus bebês não conversam com elas”, comenta.
Este foi o caso de Jacqueline Gil, administradora de empresas atuante como assessora empresarial e mãe de Samuel Gil Macedo, de 9 anos. Ela foi a primeira a perceber que o filho tinha um desenvolvimento diferente do que apresentaram suas sobrinhas mais velhas. “O primeiro aspecto que me chamou a atenção foi o modo como ele brincava, ao lado das crianças, mas não com elas. Os blocos de encaixar, ele não encaixava, mas separava por cor”, lembra.
Perto dos 2 anos, quando a maioria das crianças começam a formar frases, Samuel sequer havia começado a formular palavras. Por isso a mãe o levou ao pediatra, que o encaminhou para a fonoaudióloga, e foi ela quem o diagnosticou no TEA. “Meu primeiro sentimento foi de luto, porque você enterra um filho idealizado, que imaginou típico como as outras crianças. Não chorei, mas tive um certo travamento de aceitação. Mas sou muito rápida para destravar, o que me ajudou a encarar as lutas a seguir”, declara Jacqueline.
A primeira foi convencer o pai de Samuel, de quem é separada hoje. Ele teve dificuldade de aceitar no começo, mas acabou entendendo e se adaptando. As seguintes foram contar para o restante da família e participar de eventos sociais com o filho, que tem nível de suporte 1, ou seja, seus sintomas são leves, mas ainda assim despertam incompreensão. “É difícil explicar às pessoas que ele sofre desconfortos sensoriais [com barulho e aglomeração de pessoas]. Acham que é birra. Ouço muito que ‘ele tem que se acostumar!’, conta.
Jacqueline não demorou a procurar uma clínica em Ribeirão Preto, onde usavam a técnica ABA, que funcionou para Samuel por um período. Depois ela o mudou para outra, mais voltada para o cotidiano da criança. “Achei melhor uma clínica multidisciplinar, com fonoaudióloga, terapeuta ocupacional e psicóloga, porque os terapeutas se conversam. Hoje existem muitas em Ribeirão Preto”, diz.
Apesar do choque inicial, a mãe não tem dúvidas de que foi muito importante fechar o diagnóstico de Samuel precocemente. “Assim pude saber como ajudar meu filho a ter uma vida melhor. Ele é verbal, mas tem dificuldade para se comunicar, então eu precisava de ajuda profissional para auxiliá-lo nisso. Esta é a importância do diagnóstico. E me sinto amparada pelos profissionais”, conclui.
A jornada de Pedro
Pedro Nonato Costa, 19, foi diagnosticado no TEA aos 4 anos de idade. De acordo com a mãe, a professora universitária Maria Cristina Nonato, ele já nasceu com comportamento agitado, mas os “pais de primeira viagem” não perceberam que era atípico. Além disso, o fato dele ter nascido com um problema renal, que o levou a passar por cirurgia no órgão perto dos 2 anos, ocupou mais a atenção.
Conforme foi crescendo, porém, Pedro começou a apresentar certas peculiaridades, como sensibilidade a barulho, dificuldade de socialização com as outras crianças, falta de habilidade para entender mensagens indiretas, ironias e brincadeiras. “O Pedro sofria muito para ficar na escola e tinha pavor de festas de aniversário. Eu tinha que ficar com ele no colo e não entendia por que”, lembra Cris Nonato, como sua mãe é mais conhecida. Ao mesmo tempo, o menino manifestava uma inteligência acima da média: começou a falar com 8 meses – com o tempo, passando a usar vocabulário rico e conjugação verbal correta. Com 1 ano e 11 meses conversava com o médico sobre a molécula de água.
Aos 3 anos, Pedro foi levado à psicóloga e ao otorrinolaringologista para investigar os sintomas que chamavam atenção, mas nenhum desconfiou de TEA. Quando Cris se deparou com uma tese de Portugal sobre o espectro, pensou pela primeira vez que o filho poderia fazer parte. Quando mencionou a hipótese em família, foi taxada de “louca”, mas decidiu agir. “Consegui uma avaliação na Faculdade de Medicina da USP de São Paulo e fui para lá com o Pedro, de 4 anos, e a Rafaela, com 2”, lembra. O filho acabou diagnosticado.
Cris saiu da USP com indicações dos poucos profissionais que começavam a estudar a área, em Ribeirão Preto. “A maioria dos trabalhos existente era para autistas de nível 3 de suporte, que não é o caso do Pedro, que é nível 1”, lembra Cris, que escolheu trabalhar com a psicóloga Cecília Barreto e a fonoaudióloga Marília Montoro, como terapeuta ocupacional. “Profissionais ímpares. Aliás, nos deparamos com pessoas muito boas ao longo da história do Pedro e isso foi a nossa sorte”, diz.
Desde então, Pedro experenciou tanto acolhimento quanto discriminação. Até concluir o Ensino Fundamental, no Colégio Vita et Pax, teve um rendimento escolar satisfatório. Extremamente doce, criou ali um círculo de amizades desde bebê, pois sua turma cresceu junta. Ajudou sua socialização o fato de sua psicóloga ter ido algumas vezes à escola ensinar as pessoas a lidarem com seus sintomas, entre eles andar de um lado para o outro e falar sozinho. “Os amiguinhos acabaram meio que protegendo o Pedro. Ainda hoje ele é o Pedrinho para esses colegas”, conta Cris.
Em 2016, os pais se separaram e, em 2017, quando o garoto cursava o 7º ano do fundamental, sua mãe foi para a Universidade de Harvard (Cambridge, Estados Unidos) fazer Pós-Doc, levando os dois filhos. Assim que ela informou à Prefeitura que tinha um filho no espectro autista, foi enviado um especialista para a sala de aula fazer um diagnóstico do caso. A partir disso, foi desenvolvido um método de trabalho personalizado para Pedro. Assim, quando tinha atividade em grupo, ele era autorizado a colocar fones de ouvido. De 15 em 15 minutos, podia sair para andar ou desenhar, que para ele são atividades de descanso da mente. O resultado foi ter terminado aquele ano em Cambridge como o primeiro aluno de uma turma de neurotípicos.
De volta ao Brasil, Pedro concluiu o Ensino Fundamental e chegou a hora de mudar de escola para cursar o Médio. Seus pais escolheram uma mais elitizada, por acreditarem que teriam ali mais recursos para lidar com as diferenças do filho. “Foi terrível! Uma escola nada inclusiva, onde o Pedro foi vítima de bullying logo que entrou”, conta Cris, que prefere não revelar o nome da instituição. Mas afirma ter ouvido de seu diretor frases como “se seu filho fosse normal, ele seria expulso da escola”, dita após Pedro sofrer um episódio de burnout (esgotamento).
Intolerância
Em 2020, veio a pandemia, e o isolamento fez Pedro perder todo o trabalho de anos de desenvolvimento das habilidades sociais. “Ele ficou muito tempo dentro do quarto e, ao longo desse processo, o Transtorno Obsessivo Compulsivo [TOC, uma das comorbidades do autismo] ficou exacerbado”, conta Cris. Quando o isolamento social foi suspenso, em 2021, os pais ofereceram a ele mudar de escola, mas Pedro preferiu ficar na mesma até se formar no Ensino Médio. “Foi muito difícil porque ele tem dificuldade de prestar atenção e desliga. É um mecanismo para relaxar. A gente brinca que nesses momentos ele vai para a Pedrolândia, onde faz o que quiser”, diz a mãe, para quem a presença dele na sala de aula foi “mais figurativa”, porque não teve aproveitamento, a não ser quando o assunto chamava a atenção dele, como a aula de História. “Aí ele liga o hiperfoco”. Mas exatamente nessas aulas, em que o adolescente demonstrava saber muito mais que os colegas, foi censurado. Seus pais receberam um aviso da escola de que ele estava limitado a fazer apenas duas perguntas por aula, para deixar de atrapalhar.
Hoje fazendo cursinho pré-vestibular, Pedro planeja cursar Artes Visuais na Unicamp. Porque precisa melhorar sua Redação, a mãe o colocou num curso particular para trabalhar isso. “E lá veio a escola reclamar que o Pedro atrapalha a aula fazendo muitas perguntas”, comenta a mãe, entre indignada e resignada. “É bonito ensinar as pessoas a escreverem sobre inclusão, porque isso cai no Enem. Mas praticar é ainda um processo muito difícil”, lamenta.
QUANTO À ATENÇÃO DE QUE NECESSITAM DURANTE A VIDA, AS PESSOAS COM TEA SE DIVIDEM ENTRE:
Nível de suporte 1: não precisa de muita ajuda, sendo mais independente
Nível de suporte 2 (moderado): precisa de algum auxílio na vida diária
Nível de suporte 3 (severo): é totalmente dependente e não pode ficar desacompanhada
Luan Porto