Aumenta diagnóstico tardio de TEA em adultos
A jornalista e poeta Ana Lígia Vasconcelos Farah recebeu diagnosticado junto com o filho

Aumenta diagnóstico tardio de TEA em adultos

Mudança de critérios e camuflagem social explicam porque muita gente passa a vida sem saber que está no espectro autista

Desde 2013, quando a Associação Americana de Psiquiatria publicou documento que padronizou mundialmente os critérios diagnósticos das desordens mentais e emocionais, tem aumentado significativamente, no Brasil e em todo o mundo, o volume de diagnósticos tardios de Transtorno do Espectro Autista (TEA) em adultos. É que até então, só se procurava investigação diagnóstica ante sintomas clássicos, como dificuldade de comunicação por falta de domínio da linguagem e uso da imaginação, comportamento limitado e repetitivo, hipersensibilidade sensorial e dificuldades de socialização, entre outros. Mas passou-se a incluir no espectro portadores só dos sintomas mais leves, que nem sempre são percebidos socialmente, razão pela qual muitos seguiam pela vida sem diagnóstico.

Isso está começando a mudar, graças a campanhas como o Abril Azul, que difundem massivamente informações sobre TEA, com o objetivo de conscientizar sobre a importância da investigação diagnóstica, mesmo ante sintomas leves, que apesar de passarem despercebidos em sociedade, podem causar grande sofrimento a seus portadores. Por isso, nesta primeira de duas reportagens que a Revide produz sobre o tema, serão abordadas as causas e implicações do diagnóstico tardio de TEA em adultos – na próxima, será o diagnóstico em crianças.

 

Mais informação motiva investigação

Não existe uma estimativa oficial de qual percentagem dos 2 milhões de diagnósticos feitos no Brasil, até hoje, corresponde aos fechados tardiamente, na fase adulta. Em Ribeirão Preto, porém, o aumento é confirmado em consultórios de médicos habilitados a diagnosticar transtornos de neurodesenvolvimento, como a psicóloga Marcella Jordão Danza e o neurologista Renato Arruda.

“Diagnóstico tardio em adultos tem toda semana no consultório, e a maior parte deles de autismo leve”, diz Renato, para quem campanhas como o Abril Azul têm promovido um “movimento muito positivo de disseminação da informação, que vem gerando mais conscientização sobre o TEA”.

No consultório de Marcella, que atende mais crianças, os três adultos diagnosticados no grau mais leve do espectro chegaram buscando investigação para os filhos. “São pessoas com dificuldades de socialização que foram se adaptando de alguma forma ao longo da vida, seja escolhendo profissões em que não têm de lidar com público ou se relacionando com outras mais tímidas. Mas quando chega uma criança na vida delas, vem o desconforto, porque criança movimenta qualquer rotina estruturada”, comenta.

De acordo com a psicóloga, mesmo sentindo-se diferentes sem entender o porquê, muitos indivíduos camuflam os sintomas do TEA desde a infância até a vida adulta, para se encaixarem socialmente [leia mais abaixo “Entenda o que é masking]. “Principalmente as mulheres, que são mais adaptativas. Mas é uma camuflagem com preço alto porque sobrecarrega o emocional. É a questão de não se encaixar, de coisas muito pequenas gerarem desconfortos grandes”, diz a psicóloga, que recomendou a todos buscarem terapias voltadas para a parte emocional, a mais afetada pelo sofrimento social de não se “encaixar”.

 

O alto preço da camuflagem social

A jornalista e poeta Ana Lígia Vasconcelos Farah passou a vida sabendo que era mais sensível que o restante das pessoas. Para se adaptar, aprendeu a observar como as “normais” se comportavam e, inconscientemente, imitava. À medida que amadurecia e assumia papéis típicos da vida adulta – profissional, esposa, mãe, todos desejados e escolhidos –, ia adoecendo mentalmente: uns episódios de Burnout [veja Glossário mais abaixo] aqui, uma depressão ali, até que, durante a pandemia, chegou ao chamado “fundo do poço”. Não conseguia mais segurar a máscara.

Foi quando, em conversa com uma amiga que teve diagnóstico tardio de Transtorno do Déficit de Atenção (TDA), desconfiou de que também poderia ser o seu caso. Já era mãe então e calhou de ter começado a perceber no filho de 2 anos características associadas ao Transtorno do Espectro Autismo (TEA). “Via muito nele a criança que eu fui”, diz. Decidiu, então, buscar ajuda profissional para investigar a si e ao filho. Ambos acabaram diagnosticados no espectro.

A partir do diagnóstico, Ana descobriu várias outras coisas sobre si mesma: que seus incômodos com barulhos altos e multidões, sua inabilidade social e a dificuldade de desempenhar funções que para outras pessoas são fáceis, estão entre os sintomas mais leves do transtorno; que sua imitação inconsciente de neurotípicos chama-se “masking”; que ela ia bem nos estudos porque acionava o hiperfoco, outro sintoma do transtorno caracterizado por concentração intensa; e que suas crises de depressão e Burnout estão entre as chamadas “comorbidades” [veja Glossário mais abaixo], desencadeadas quando o transtorno não é tratado.

Por fim, Ana achou que tinha vários problemas diferentes, mas todos faziam parte de um só.

 

A ‘chata’ de qualquer grupo

Para Valéria [nome fictício], que prefere não se identificar, a falta de tratamento desencadeou uma crise depressiva, aos 30 anos, e fibromialgia, na casa dos 40. O diagnóstico de TEA veio após os 50, como no caso da atriz Letícia Sabatella. Também em seu caso o hiperfoco ajudou nos estudos, que sempre considerou mais prazer do que dever. Conforme crescia, o isolamento social a levava a abusar dele em hobbies solitários, como ler, assistir filmes e maratonar séries. “Consigo ler um livro de que gosto em um bar lotado e com música ao vivo sem me abalar”, conta.

Por outro lado, Valéria sempre dispendeu muita energia tentando se integrar socialmente, quase sempre sem muito sucesso. “Eu era sempre a ‘sem noção’, a ‘chata’ ou ‘problemática’ de um grupo. Dificilmente era convidada para festas ou aquele barzinho depois do trabalho e algumas vezes fui até desconvidada de programas”, lembra. Hoje ela entende que sua baixa percepção de pistas sociais a levava a ser franca demais quando não devia e a ter comportamentos antipáticos, como pegar uma revista para ler no meio de uma roda de bate-papo, por exemplo.

Os poucos amigos que Valéria fez ao longo da vida foram persistentes o bastante para conhecê-la para além de sua inabilidade social e aceitá-la com suas idiossincrasias. Mas até eles se irritavam às vezes, bem como o primeiro namorado, hoje marido. “No começo, ele achava que minha dificuldade em perceber certas coisas eram desinteresse ou descaso. Hoje ele sabe que não tenho muita escolha, pois não posso mudar como meu cérebro funciona. Mas muitas coisinhas que não consigo controlar ainda incomodam e sempre vão incomodar no dia a dia, o que me entristece”, confidencia.

De acordo com a psicóloga Marcella, Valéria desenvolveu muita auto-cobrança, o que em psicologia é considerado um dos principais controles inibitórios [ver Glossário]. Como Ana, pagou com o prejuízo de sua saúde mental o alto-preço do masking e da culpa por ser como é. “O masking me adoecia porque é muito cansativo”, diz Ana, que chegou a pensar em suicídio durante a crise de depressão enfrentada na adolescência, mas foi diagnosticada a tempo e passou a ter acompanhamento psicológico. Porém, em 11 anos de psicanálise, nem ela e nem a psicóloga desconfiaram de TEA. “A terapeuta dizia que eu era mais sensível que os outros por ser artista”, lembra.

Valéria diz que sempre se cobrou e culpou muito por não conseguir evitar alguns comportamentos antissociais, por isso estava sempre em alerta, se vigiando para não cometê-los. “Talvez por isso o período da pandemia tenha sido um dos mais tranquilos da minha vida. Com a obrigatoriedade do distanciamento social eu não precisava me esforçar tanto. Estava em paz com a minha natureza”, afirma.

 

Alívio

Tanto para Ana quanto para Valéria, além de um tratamento mais adequado – baseado em terapias para tratar o emocional –, o diagnóstico trouxe auto-perdão. “Chamo também de reconciliação comigo mesma. Ainda me cobro em situações profissionais, porque preciso me manter em um meio competitivo, que não vai me dar desconto por eu ser diferente. Mas já não me puno mais”, diz Valéria. “Foi um grande alívio [receber o diagnóstico], porque explicou muita coisa para as quais eu não tinha resposta. E ficar sem resposta acaba com nossa autoestima. É como se fosse um renascimento, porque tive de ressignificar toda a minha história, olhar para o passado e entender muita coisa. Então, a autoestima deu uma melhorada. Mas sigo aprendendo até hoje”, finaliza Ana

 

ENTENDA O QUE É MASKING

Do inglês “mascaramento”, o termo masking denomina, no âmbito da saúde mental, uma estratégia de enfrentamento social de que pessoas no Espectro Autista lançam mão, conscientemente ou não, para camuflar seus sintomas. O objetivo é se encaixarem em situações sociais.

O mascaramento pode incluir esforço para suprimir estereotipias (comportamentos motores ou verbais repetitivos), imitar expressões faciais de pessoas neurotípicas, evitar tópicos de interesse pessoal (para não revelar o quão são intensos e especializados no assunto, pois é uma característica dos neurodivergentes) e adotar padrões de comunicação não naturais para diagnosticadas com autismo.

O masking envolve, porém, um gasto de energia excessivo nas tentativas de assimilar e aprender comportamentos considerados “típicos”, o que leva essas pessoas no espectro a se sentirem totalmente esgotadas, durante ou logo após se exporem a situações sociais.

Essa camuflagem (ou mascaramento social) como estratégia de inclusão é uma das teorias aceitas, atualmente, para explicar os diagnósticos mais tardios e menos frequentes em mulheres, em comparação aos homens. Nos últimos anos, ela começou a ser investigada, primeiramente, junto a meninas e mulheres no Espectro Autista, por meio de pesquisas qualitativas que analisaram experiências de autorrelato, principalmente, para investigar por que o diagnóstico tende a ser tardio nesta população. 

A pesquisa apontou consequências negativas da camuflagem, como índices de estresse elevados, problemas de saúde mental (depressão e ansiedade, por exemplo), exaustão e falta de acesso a suporte ou serviços de saúde especializados decorrente da ausência de diagnóstico. 

Nos últimos anos, algumas pesquisas também tentam criar uma medida para rastrear, avaliar e quantificar a camuflagem social em autistas adultos.

 

GLOSSÁRIO

 

Comorbidades

Ocorrência de duas ou mais doenças relacionadas no mesmo paciente e ao mesmo tempo. Uma de suas características é a possibilidade de as doenças se potencializarem mutuamente, uma provocando o agravamento da outra.

 

Controle inibitório

Habilidade para inibir ou controlar respostas impulsivas ou automáticas e criar réplicas usando a atenção e o raciocínio

 

Hiperfoco

Termo usado para descrever o estado de concentração intensa numa tarefa ou conjunto de estímulos específicos. Durante esse estado de absorção completa, o indivíduo tem uma percepção diminuída de estímulos que não são relevantes para a tarefa.

 

Neurodiverso ou neurodivergente

Pessoas com um desenvolvimento ou funcionamento neurológico diferente do padrão esperado pela sociedade em geral.

 

Neurotípico

Pessoas com um desenvolvimento ou funcionamento neurológico considerado "normal" dentro de padrões definidos em relação a memória, atenção, cognição e assim por diante.

 

Síndrome de Burnout

também conhecida como Síndrome do Esgotamento Profissional, é um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade.

 


Fábio Melo

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