Abuso sexual: algumas roupas se lavam em praça pública

Abuso sexual: algumas roupas se lavam em praça pública

Para 58,5%, o comportamento feminino influencia estupros, diz pesquisa divulgada nesta quinta-feira (27) pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão do governo (fonte G1). Por mais que tenha-se falado muito sobre as possíveis falhas desta pesquisa, vou considerar os dados válidos posto que, por intuição, eles não são tão absurdos assim. Como vamos interpretar esses dados? Vejo duas linhas de argumentação.

Primeiro, segue a afirmação comum de que os homens são detentores de algum tipo de poder sobre as mulheres, fato que forma as bases da “cultura machista”. Há diferenças marcantes entre os dois sexos, desde a configuração física à estruturação psicológica, o que tornou a mulher historicamente dependente do homem e de todo o tipo de proteção contra os desamparos materiais e afetivos da vida. No entanto, a imagem da mulher desamparada e desejosa de uma posição forte e inequívoca do homem vem aos poucos se desgastando pela própria reconfiguração do papel econômico e social da mulher. As mulheres constituem grande parte da mão de obra de trabalho, geram renda, votam, estudam, são enfim, independentes sob o ponto de vista material. Portanto, o poder do homem sob a mulher vem sendo enfraquecido. Ao mesmo tempo que isso promove a mulher ao status de independência relativa, causa certa insatisfação nelas mesmas e nos homens. Há certamente um movimento de retorno, em que homens e mulheres reclamam seus papeis, que antigamente eram bem definidos e até justificam que a estrutura familiar atual tenha se corrompido por conta dessas modificações.

Segundo, é comum pensarmos que os homens não tem nenhum tipo de poder de escolha sobre seus próprios instintos sexuais. Isso torna os homens “vítmas” do poder sedutório das mulheres. Se os homens são vulneráveis, precisam ser protegidos da influência maligna das mulheres. E assim justificam-se os mais terríveis abusos contra elas; e as próprias mulheres pensam assim. Pensam que são culpadas por atos de abuso que sofrem. E é nessa confusão de papéis que centro minha preocupação: Vítima e abusador se confundem facilmente.

ROUPA SUJA?

Duas afirmações da pesquisa me chamaram muito a atenção, pois são quase unanimes. São elas: “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher” com 78% que concordam total ou parcialmente com a afirmação, e, “A roupa suja deve ser lavada em casa” com 89% que concordam total ou parcialmente com a afirmação. Esses dados representam um problema de difícil solução. Diz respeito a dificuldade da vítima em se sentir “vítima de fato” e denunciar o abuso para autoridades responsáveis e tornar público o abuso. A mulher abusada ou estupradas muitas vezes sente-se culpada pelo abuso. A culpa sentida torna-se ainda mais dolorida quando somamos a vergonha por ter sido seduzida ou coagida. Na intimidade do lar, do ambiente de trabalho ou na sala do psicólogo ou terapeuta, há uma espécie de barreira intransponível que torna impossível a delação ou mesmo identificação do culpado. A fórmula deveria ser simples: Abuso sexual é a denominação vulgar e legal para designar uma série de práticas sexuais onde há o desvirtuamento de alguns pressupostos necessários para sua ocorrência, tais como a falta de consentimento, ou uso da violência, física ou moral. O abuso de maneira geral (assédio no trabalho, abuso de menor, estupro) requer uma relação desigual entre as partes em que há uma parte mais frágil e menos poderosa e outra acima, mais poderosa.

ROUPA SUJA DA PSICANÁLISE

Penso agora nessas relações desiguais que se dão naturalmente em minha profissão e que merecem extremo cuidado. Um assunto tabu na psicanálise, mas muito comum em discussões éticas entre as quatro paredes das instituições, são casos de abuso sexual sofridos por pacientes. Há casos em que analistas apaixonam-se por suas pacientes e acabam por romper o pacto analítico. Nesse momento não são mais parceiros de uma psicanálise possível. Na relação analista-paciente há forças muito poderosas em jogo, que colocam o analista como um sujeito com grande poder sobre o paciente e essa posição não pode, em hipótese alguma, servir para finalidades ou interesses sexuais ou pessoais. O analista suficientemente bom e hábil sabe manejar essa situação de modo a não romper a relação analítica e continuar a análise.  

Uma pessoa desavisada pode pensar: “Uma pessoa que se envolver com o analista, não foi abusada, pois são dois adultos, certo?” Errado!

Primeiro, que por formulações da própria Psicanálise Freudiana, o inconsciente, objeto principal de investigação do psicanalista, abriga processos atemporais isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema Cs (sistema consciente). Isso significa que em análise, o psiquismo do analisando não tem idade e comumente refere-se a épocas primitivas de seu desenvolvimento. A idade, o tempo cronológico das memórias é um dado da consciência.

Segundo, Ceccareli (2004) mostra que quando um analista se envolve com um paciente este abuso é da ordem da “pedofilia”, pois, o sujeito que busca ajuda terapêutica em boa parte das vezes é um sujeito regredido. É de muitas formas, uma criança que pede ajuda (o termo regressão pode ter 3 sentidos em psicanálise: a regressão tópica, a regressão no tempo e a regressão da forma. Essas duas últimas referem-se, respectivamente a retorno à modos de funcionamento mentais primitivos e retorno à modos de expressão e comunicação primitivos). O termo regressão portanto não quer dizer que você é doente ou fraco. O paciente é uma criança no sentido de ser desamparado por conta de uma angustia grande e é uma criança no sentido de que a psicanálise visa remeter o paciente à tempos remotos do desenvolvimento psíquico em busca de traumas e complexos que se atualizarão na transferência com o analista. O autor continua e coloca que “a culpa que acompanha o ato, devido a realização de desejos proibidos, muitas vezes impede que o analisando expresse sentimentos de ódio que lhe permitiria reavaliar, ou mesmo abandonar, o tratamento. Esta situação guarda semelhanças com aquela onde a criança, vítima de abuso sexual, não conta a sua mãe o que está acontecendo por medo de ser punida.”

O ser humano estuprado ou abusado em hipótese alguma deve ser culpado. Ele é vítima.

Precisamos urgentemente elaborar meios culturais e institucionais de facilitação das vias de denúncia para que possamos lavar a roupa suja em público... e lavar muito bem!   

 

REFERÊNCIAS

Tolerância social à violência contra as mulheres. Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), IPEA, 27 de março de 2014.

FREUD, S. (1915). Obras Completas, Vol. XIV, O Inconsciente.

CECCARELLI, P. R. A perversão do outro lado do divã. in Destinos da Sexualidade, Portugual, A. M; Porto Furtado, A; Rodrigues, G; Bahia, M, A; Gontijo, T; (org.) São Paulo, Casa do Psicólogo, p. 243-257, 2004.

 

 

 

 

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