Amor, estranho amor

Amor, estranho amor

Nasci no interior paulista. Respirei desde sempre os ares de uma região repleta de verde, bichos, pássaros, terra. Não sou protetor dos animais, mas essa relação com a natureza “quase” selvagem, me fez amar, pelo menos, os cachorros.Eu como carne e não tenho grande atração em acordar com pássaros cantando, e as paisagens de uma cidade de concreto até que podem ser belas.

Como um bom interiorano, sempre estive muito próximo da cultura agropecuária, aquela que constitui a raiz dos costumes brasileiros (mesmo você não vestindo botas, fivela e chapéu). Vemos em diversas partes do mundo festas em que esses bichos (de interesse econômico para o homem como boi, cavalo, cabra, carneiro etc.) são o centro das atenções. Nos rodeios, bastante comuns na minha região interiorana, há quem veja um espetáculo de crueldade, em que os animais são maltratados e torturados para exibirem um comportamento agressivo, dar coices, pulos e fazer a diversão (e o bolso) dos peões. Por outro lado, há mobilização de grupos contra esse tipo de festa alegando que a festa constitui crueldade pura, e deve ser abolida. No município de São Paulo, por exemplo, são proibidos rodeios (desde 1993) e espetáculos circenses com animais (desde 2005).

Pois bem, configura-se então uma “rixa” entres os “malvados” peões e simpatizantes de rodeios (muitos deles, pois a festa de Barretos contou com 720 mil pessoas, e trouxe à cidade em torno de 1,2 milhões de turistas), e os pacifistas protetores dos animais. Um grupo diz que os animais não são maltratados, pelo contrário, temos médicos veterinários e a profissão de peão é regulamentada e alem do mais, são apenas 8 segundos. O outro grupo diz que a crueldade é enorme: os animais são condicionados a ficarem agressivos por meio de choque, agulhadas e maus tratos. Eles pulam daquele jeito, pois seus órgãos genitais são pressionados por um correia (sedem). Portanto, discutem se ocorre ou não crueldade. E obviamente, os peões fogem desse rótulo de torturadores de animais.

Uma coisa é fato, há crueldade, pois sem amedrontar o animal e inferir-lhes maus tratos, o animal não ficaria bom para o espetáculo. Recentemente, vendo um espetáculo desses, o animal simplesmente parou de pular e ficou olhando em volta, com o peão atônito sobre seu lombo. Eu pesquiso medo e ansiedade há 4 anos, e sei que há uma gradação de comportamentos que depende da intensidade do estimulo aversivo. Em outras palavras: um estímulo de medo bem fraco, promove um comportamento (por exemplo, alerta, em que o bicho se atenta para perceber se há perigo realmente), em um estimulo médio, há um comportamento de congelamento (em que o animal fica imóvel e preparado para um fuga). Um estímulo forte de medo promove o comportamento de fuga (caracterizado por salto, galopes de modo descontrolado). Um estímulo de medo forte e inevitável, aplicado ao longo do tempo (ou seja, de modo crônico) promove desamparo aprendido, um dos mais utilizados modelos animais de depressão. Nele, animais pré-expostos a choques elétricos inescapáveis nas patas desenvolvem déficits de esquiva ou fuga quando expostos, 24 horas após, à nova situação na qual poderiam evitar ou escapar do estímulo aversivo. Esses déficits têm sido relacionados ao sentimento de desamparo que acompanha a depressão em humanos (Joca et al., 2003)

Em outras palavras: imagine se você vivesse em um local em que todo dia você teria que passar inevitavelmente por situações aterrorizantes, de inicio reagiria, tentaria encontrar uma saída. Mas com o passar do tempo e a constatação de que você não tem saída, você fatalmente perderia as esperanças. Ficaria amuado, num canto, pois não há nada que se fazer, apenas agüentar sua vida miserável.

Aquele boi parado na arena me lembrou essa situação extrema em que não há nada que se fazer, nem pular e nem nada.

Acredito que os peões e todas as pessoas ligadas aos rodeios e festas desse tipo realmente amam os animais. Vejo essas festas como uma celebração desse “estranho amor”.

Explico: É muito comum no relacionamento humano, que um casal que, embora se ame mutuamente, não faça outra coisa se não brigar. Vendo mais de perto, percebemos que esse casal realmente se ama, mas encontraram um modo agressivo e sádico de expressão desse amor. Tapas, socos, xingamentos, implicância com que se faz ou deixa de fazer e falta de carinho e atenção constituem uma expressão desse sentimento, que pode parecer ódio, mas é expresso sobre o nome de amor. Então é hora de percebemos que nunca fomos e nunca seremos “santos” ou pessoas de pura bondade, e que nossa relação com o mundo se dá também por vias agressivas. Não há sexo e nem alimentação sem certo nível de agressividade. Necessariamente – e não há o que possa mudar isso – matamos (plantas e animais) para nos alimentarmos.

É hora de entendermos nossa condição de animais agressivos e assassinos, o que não significa passividade frente a maus tratos animais os quais sou terminantemente contra. Significa que passaremos a entender com mais profundidade as razões que levam a humanidade a extrair prazer à custa de atividades repletas de agressividade. Repudiamos tais atividades e tratamos de reprimí-las, por consequência fortalecemos e eternizamos sua permanência confusa em nossa mente.

Referência:Joca, S.R.L., Padovan, C.M. & Guimarães, F.S. 2003. Estresse, depressão e hipocampo. Rev. Bras. Psiquiatria., vol.25.

 

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