Pais, filhos e o poço escuro de nós

Pais, filhos e o poço escuro de nós

“Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído”

(Chico Buarque, em Uma Canção Desnaturada)

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A cena típica da “família Doriana” que aparece feliz e sorridente nas propagandas de televisão esta fadada ao fim, ou nunca foi real mesmo. A relação entre pais e filhos é coisa complicadíssima. E o que eu quero falar aqui é do ódio entre eles, como nos diz de maneira cruel e poética Chico Buarque. Além desta canção, mais duas obras artísticas servirão de ilustração para meu texto: O filme “Todos estão bem (2010)” e “Anticristo (2009)”. Sem dúvida há muito amor no “pacote de sentimentos” entre pais e filhos, mas inegável e totalmente reprimido, o ódio irrompe em ocasiões diversas. O divórcio é uma delas. Recentemente a legislação brasileira reduziu a burocracia em torno do processo de divórcio, penso que na tentativa de facilitar o distanciamento de dois ex-amantes furiosos que se odeiam mutuamente e que não titubeiam em manipular os filhos como um objeto de defesa nesta batalha.

Muitas vezes no processo do divórcio, ouvimos a seguinte frase: “Não gosto mais dele, e nem ele de mim, mas a minha filha não vai aguentar ficar longe do pai”. O que se segue então é um casamento em função da criança. A coitada não opta pelo nascimento e já logo cedo é incumbida de administrar um casamento entre dois adultos, desprotegida e inocente participa das brigas. Ao mesmo tempo, a mãe sente que teve sua feminilidade roubada por esta criança motivo que desencadeia mais punições. No filme “Anticristo” essas punições ficam claras culminando com a morte da criança.

A maioria dos casos de violência infantil acontece em casa, onde “ninguém mete a colher”. A saída neste caso é a justiça. Nesta quarta-feira (14/7/2010) foi encaminhado um projeto de lei ao Congresso Nacional com a proposta de incluir “castigo corporal” e “tratamento cruel e degradante” como violações dos direitos na infância e adolescência. Outro tipo de violência é a síndrome de alienação parental, um termo proposto por Richard Gardner em 1985 para a situação em que a mãe ou o pai de uma criança a "treina" para romper os laços afetivos com o outro genitor, criando fortes sentimentos de ansiedade e temor em relação ao outro genitor. Estima-se que 80% dos filhos de pais divorciados já sofreram algum tipo de alienação parental. (www.alienacaoparental.com.br).

Na situação de divórcio essas relações perversas são explícitas, mas no dia-a-dia observamos a mesma perversão, mas de modo silencioso e coberto de boas intenções. No filme “Todos estão bem”, o pai (Robert de Niro), um típico pai de família que trabalhou a vida inteira para que os filhos pudessem crescer e serem felizes, questiona seus atos como pai no fim da vida e conclui que poderia ter sido menos severo. Ele batia em seus filhos? Não. Ele era agressivo? Não. Ele simplesmente disse certa vez: “Filho, você vai trabalhar duro? Vai me deixar orgulhoso e ser artista?” E o filme retrata como os filhos carregam um fantasma do pai dentro de si, um fantasma que vai praticamente ditar os parâmetros da vida, por toda vida, e determinar uma luta interna entre o que o “pai deseja” e o que o “filho deseja”.

Na boa intenção de orientar os filhos, e meter lhes goela a baixo suas próprias vontades, os pais intoxicam os filhos e os orientam, na verdade, a viverem uma vida postiça, falsa. Demonstração de ódio maior que essa não existe: fazer o filho se transformar em um escravo eterno das vontades paternas. E tudo isso, sem perceber e acreditanado piamente que o que se está fazendo é “o melhor” para eles.

 

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