Ensinar nativos digitais: eis a questão

Ensinar nativos digitais: eis a questão

Antenadas com tudo o que acontece ao redor e habilidosas no uso das diferentes tecnologias, as crianças da atualidade já não querem mais se sentir “presas” entre quatro paredes

Hoje em dia, ouve-se muito dizer que as crianças “parecem nascer com um chip” porque lidam com habilidade nata com celulares, tablets, games e computadores. Intuitivamente, passam os dedinhos pelas telas touchscreen dos aparelhos e descobrem funções que muitos adultos nem imaginavam existir.

Em 2001, o escritor e designer de videojogos norte-americano Marc Prensky, em seu artigo “Digital Natives, Digital Immigrants”, nomeou essa geração nascida na era dos bits de Nativos Digitais. O conceito, ainda atual, define bem o perfil dessas crianças e jovens habituados a realizar tarefas simultaneamente, como teclar com amigos em redes sociais, enquanto assistem a vídeos, fazem download de músicas, baixam apps, jogam games e pesquisam algo para a escola.

O escritor sugere que essa mudança radical no perfil do estudante exige uma reestruturação na Educação, pois os alunos de hoje não são as pessoas para quem foi desenhado o sistema de ensino atual. Esse período de transição vivenciado na atualidade pode facilmente ser identificado em salas de aula de todo o país, onde apatia, abstração e conflito são comuns em função do descompasso entre os professores, “imigrantes digitais”, e os alunos “nativos digitais”.

A situação tende a se tornar cada vez mais crítica. Segundo dados compilados pela União Internacional das Telecomunicações (UIT), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgados em 2013, o Brasil possui a 4ª maior população de nativos digitais do mundo — atrás apenas de China, EUA e Índia —, concentrando cerca de 20 milhões de jovens com idade entre 15 e 24 anos e experiência de conexão à internet de, pelo menos, cinco anos.

Ouça também o que tem a dizer o professor José Dutra de Oliveira Neto sobre suas experiências com a utilização das diferentes tecnologias no ensino

O estudo leva para o topo da lista de prioridades a reflexão sobre essa nova realidade, apontando que os nativos digitais já representam 5,2% da população mundial e chegam a 30% do total dos jovens. Este número tende a aumentar cada vez mais, em função da inclusão digital, segundo a ONU.

Revendo conceitos
José Dutra de Oliveira Neto, mestre em Computação e pós-doutor em Educação, coordenador de um grupo de pesquisa na área de tecnologias educacionais e educação a distância na Faculdade de Economia e Administração de Ribeirão Preto (FEA-USP), afirma que qualquer mudança na Educação leva entre 20 e 30 anos para acontecer, não apenas para se mudar a mentalidade dos envolvidos, mas também para se transmitir novos valores. “Toda essa geração de professores, principalmente no Ensino Fundamental e Médio, é de ‘imigrantes digitais’. Essas pessoas teriam que ser capacitadas para desenvolver algo diferente. Promover a mudança com pessoas mais velhas é mais difícil, por isso, acredito que ainda vai demorar muito tempo para que a transformação ocorra”, enfatiza José Dutra.

Neste processo de capacitação, segundo o professor, o papel da universidade, atuando cooperativamente em resposta a todo o investimento público que recebe, seria fundamental. Dutra destaca também outro ponto relevante de mudança comportamental: a do próprio aluno que, neste novo modelo, passa a ser muito mais responsável pelo próprio conhecimento do que no modelo atual. “Esta é uma geração diferente e a forma de ensinar, e aprender tem que ser diferente. No entanto, ainda vemos práticas de 100 anos atrás sendo reproduzidas. É importante observar como éramos, onde estamos e como achamos que será o futuro”, avalia. Segundo o especialista, no passado o professor ficava sobre um tablado, numa posição superior, com os alunos voltados para frente, impedindo a comunicação lateral, sendo que para falarem precisavam pedir permissão. “Esse modelo limitante perpetuou a ideia de que o compromisso com o aprendizado acaba com o sinal do intervalo, quando, na verdade, não deveria haver limite. No futuro, a sala de aula deve se tornar um ambiente onde professor e aluno são parceiros no processo de aprendizagem. O professor será um mediador e os alunos participarão mais ativamente da sua própria formação”, afirma Dutra.

A ressalva apontada pelo professor está no fato de os alunos serem fruto de uma cultura educacional em que só recebem. Segundo ele, existem três tipos de atividades básicas no ensino, mas 90% dos professores utilizam apenas as de absorção (leitura) e as práticas (exercícios), esquecendo-se de uma terceira que talvez seja a mais importante: as de conexão (com a realidade), que impõem maior ação e reflexão. Como não estão acostumados a ter iniciativa, alguns alunos acham que o professor não está se empenhando quando não fica falando na frente da sala durante a aula. “No modelo atual, ignoramos o potencial do aluno e não o preparamos para ajudar os outros. A ideia é criar uma cultura para que eles façam a gestão do próprio conhecimento. Sair desse modelo antigo, onde o professor é o único disseminador de conhecimento, para um novo formato onde ele se torne um dos recursos disponíveis”, propõe Dutra.

Colocando ideias em prática
Seguindo essa linha de raciocínio — embora seja difícil para a geração de imigrantes digitais admitir —, Marc Prensky propõe uma revisão na forma e na metodologia de ensinar, que considere a capacidade diferenciada da nova geração de estudar, enquanto assiste televisão ou ouve música, por exemplo. Isso partindo do pressuposto de que aprender e se divertir podem e devem ser sinônimos.

Muitas atitudes têm sido tomadas, de forma pontual, por escolas e por faculdades no sentido de atender a esta nova demanda. A Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP), por exemplo, institucionalizou uma nova disciplina chamada “Gestão do Conhecimento”, que vai ao encontro dessas ideias. A partir deste ano, todos os cursos passam a experimentar a proposta de construção do conhecimento por meio do uso das tecnologias de forma livre e desimpedida.

Os professores foram instrumentalizados pela universidade para mostrar aos alunos, por meio desta disciplina, o quanto, embora sejam digitalmente instruídos, têm dificuldade para gerar conhecimento. “Nossos alunos são supercompetentes em lidar com as diferentes tecnologias, mas não sabem como utilizá-las para produção de seu próprio conhecimento ou como trazê-las de forma produtiva para dentro da sala de aula, tornando-as úteis para o seu dia a dia”, comenta a professora Ana Paula do Carmo Marcheti Ferraz.

Embora tenham se sentido desconfortáveis no início com o modelo inovador, pautado pela metodologia ativa, a grande maioria dos alunos chegou ao final do semestre com a certeza de que adquirir e construir conhecimento, embora seja trabalhoso, dá enorme prazer. Esse passa a ser um aprendizado para toda a vida, garante a professora.

De forma semelhante, na Estácio UniSEB foi implantada uma nova disciplina no primeiro semestre de todos os cursos chamada “Planejamento de Carreira e Sucesso”. A escola se identificou que, independentemente do curso que o aluno faça, existe grande dificuldade de entendimento do mercado de trabalho da área escolhida e, muitas vezes, despreparo para alcançar a carreira profissional, faltando até a compreensão se realmente se tomou a decisão certa na escolha do curso. “O estudante entra cedo na universidade e, às vezes, fica perdido, principalmente, em relação ao seu planejamento de carreira. Por isso, implantamos essa disciplina em todos os cursos. Ela tem o grande diferencial de não ser presencial, assim, além das aulas preparadas on-line, temos a oportunidade de oferecer para todos os alunos do país palestras com grandes nomes como, por exemplo, o administrador e escritor Max Gehringer comentando sobre carreira e planejamento de orçamento pessoal”, aponta a diretora acadêmica, Angela Massayo Ginbo.

Na Escola do Amanhã, a implantação do projeto “Empreendedor Júnior”, idealizado pelo professor Juliano de Paula Mineli, possibilitou aos alunos aprenderem álgebra de uma forma muito mais atraente. “O professor de matemática, muitas vezes, trabalhando mais o ponto de vista conteudista, acaba esquecendo sua responsabilidade no desenvolvimento geral. Com isso, a dificuldade de aprendizagem acaba passando de um ano para o outro. Pensei que deveria modificar isso de alguma forma. Como eles têm gana por celulares, redes sociais, etc, resolvi utilizar a questão do empreendedorismo, que uso na faculdade, também para o Ensino Fundamental II. Foi um risco, precisei adequar a linguagem, mas os resultados têm sido surpreendentes”, relata Mineli.

O programa aborda matemática financeira e microeconomia, também utiliza tecnologia e estimula a criatividade. Primeiro os alunos precisam identificar um problema da sociedade e tentar resolvê-lo criando um produto inovador ou melhorando algo que já existe. Depois desenvolvem um planejamento de marketing para divulgação de seu produto. Na terceira etapa, participam de uma Feira de Negócios para tentar vender seu produto. Ao final, apresentam seu negócio a um investidor estrangeiro fictício, sendo obrigados a argumentar em inglês e, se conseguem investimento para sua empresa, recebem uma premiação das “Melhores Empresas do Ano”, por terem conseguido atingir todos os objetivos e entenderem o que é ser empreendedor.

Desenvolvida há cinco anos, a proposta já surtiu efeitos reveladores. “Agora, os estudantes não apenas sentem menos dificuldade para resolver uma equação de segundo grau. Possuem conhecimento de custo fixo e variável, como também se sentem mais seguros para tomar decisões”, conta Juliano. Um aluno decidiu fazer administração e se tornar um empreendedor; outra, que não entendia o negócio da mãe, agora está decidida a trabalhar junto com ela.

Educação e tecnologia
Doutor em Psicologia e Coordenador do Colégio FAAP, em Ribeirão Preto, Luiz Celso Toledo acredita que a tecnologia não deve estar no centro do processo educacional, mas que seja uma ferramenta importante. “Os alunos hoje têm muita informação à disposição e a tecnologia é, sem dúvida, muito útil como recurso pedagógico, pois a qualidade do aprendizado com ela é diferente. Facilita, por exemplo, visualizar o corpo humano, o mapa de uma região ou os planetas quando se explica sobre eles, mas perde-se um pouco também da imaginação e isso é algo que requer cuidado”, enfatiza Luiz Toledo.

Para ele, a proximidade entre o professor, o aluno e a coordenação é decisiva em qualquer proposta de ensino. Ciclo de aulas temáticas propostas pelos alunos, filmes clássicos comentados por professores, orientação vocacional e criação do Grupo Desassossego, para discussão de temas variados da atualidade, são formas encontradas pela escola para lidar com a questão, contribuindo, ainda, para ampliar a cultura geral dos alunos. “Penso que a contribuição da escola para uma almejada formação cidadã poderia ser maior com uma mudança na configuração da escola no Brasil. Seria interessante ter um sistema seletivo diferente onde, além dos conhecimentos formais, fossem valorizados aspectos humanos, assim como fazem as melhores universidades do mundo, considerando o histórico de vida dos candidatos”, avalia o coordenador.

Trata-se, segundo Luiz Toledo, de outra maneira de conceber o processo de desenvolvimento, pensando a Educação como parte de um processo maior de evolução da pessoa. “Em um lugar você tem o conhecimento acadêmico como o mais importante e, no outro ele, é considerado fundamental, desde que esteja associado ao amadurecimento da pessoa também. Isso muda a situação”, salienta o coordenador.

Educação e trabalho
Professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), Adriana Caldana coloca a necessidade de uma revisão ampla de procedimentos na tratativa com as novas gerações não somente no campo da Educação, mas também do trabalho. “Essa é uma inquietação constante, não só na educação como também nas empresas. Como profissional de Recursos Humanos (RH), acompanho muitos conflitos entre as gerações no ambiente profissional, mas tenho uma perspectiva muito positiva das últimas gerações porque vejo nesses jovens valores muito alinhados aos princípios que acho que o futuro precisa, propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU) na Agenda do Milênio”, enfatiza Adriana Caldana.

Trilhando esse caminho, a FEA-USP, desde o ano passado, montou um escritório de sustentabilidade, ligado a um movimento da ONU de formação executiva responsável, que desenvolve atividades nesse campo e já resultou em duas ações importantes: a criação de um Centro de Voluntariado Universitário, que se tornou referência para outros campi, e do Programa Integrado de Capacitação Empreendedora. “Não parto da ideia de que jovem é desinteressado ou de que rebeldia é natural. O sistema educacional é que precisa aprender a lidar com essa inquietação, transformando-a em ação, em ideias positivas. Temos que ‘cutucar’ os estudantes e aproveitar essa rebeldia porque o mundo não pode continuar como está. Eles têm muita iniciativa e pouca ‘acabativa’ porque faltam projetos em que realmente acreditem. Tudo que querem é fazer a diferença no mundo”, enfatiza Adriana. 

Texto: Yara Racy
Fotos: Ibraim Leão

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