Faculdade para quê?

Faculdade para quê?

Pressão sofrida pelas universidades para formação voltada ao mercado de trabalho pode ofuscar a pesquisa e a formação humanística no ensino superior

A universidade é um espaço de produção de conhecimento. A afirmação soa óbvia, mas tem sido reforçada por pesquisadores e especialistas em educação. Com instituições cada vez mais voltadas para o mercado e que divulgam peças publicitárias nas quais o valor da mensalidade é o principal chamariz — sobressaindo-se à qualidade do ensino –, a formação científica, humanística e cidadã volta ao centro do debate.

 

Atualmente, o Brasil possuí 8,5 milhões de universitários, o número inclui estudantes de todas as redes e modalidades de ensino superior. São 6,4 milhões no setor privado, que inclui universidades, centros universitários, faculdades e universidades confessionais; e 2,1 milhões no setor público.

 

Universidades oferecem cursos amplos de graduação e pós-graduação em diversas áreas. Centros universitários são mais específicos em termos de foco acadêmico, enquanto faculdades são altamente especializadas em áreas específicas, como Direito ou Medicina. A diferença fundamental reside na amplitude e na especialização da oferta educacional. Todas essas modalidades de ensino são diferentes do ensino técnico, que se concentra em habilidades práticas e preparação direta para o mercado de trabalho em áreas específicas. 


Dados relativos ao número de ingressantes no ensino técnico e no ensino superior, que estão disponíveis no INEP e na Plataforma Nilo Peçanha, ambas vinculadas ao Ministério da Educação, apontam que o ensino superior continua a superar bastante o ensino técnico. Em 2021, foram cerca de quatro milhões de ingressantes no Ensino Superior contra pouco mais de 780 mil ingressantes no Ensino Técnico.

 

Em 2021, foram cerca de quatro milhões de ingressantes no Ensino Superior contra pouco mais de 780 mil ingressantes no Ensino Técnico

 

Apesar disso, o professor Rafael Tomaz de Oliveira, diretor de ensino, pesquisa e extensão da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp), provoca reflexão apresentando um dado relevante sobre o Ensino Superior: a taxa de desistência. Os cursos superiores em tecnologia acumulam, desde 2019, uma taxa de desistência na casa dos 62%, enquanto os bacharelados somam 59%, e as licenciaturas 56%.

 

"Isso significa que mais da metade das pessoas que ingressaram no Ensino Superior abandonam sua formação ou buscam ingressar em outra carreira, diferente daquela de sua escolha de origem. Nos cursos técnicos, a taxa de evasão fica na casa dos 19%. Este é um aspecto relevante: o que acontece com nossos cursos superiores que não conseguem reter, ao menos 50%, de seu público inicial?”, questiona o docente. Para ele, esses dados representam um indicio de que a universidade precisa refletir sobre suas possibilidades, para compreender como pode corresponder de forma mais adequada às expectativas da sociedade, de modo a cumprir de maneira mais eficaz a sua missão institucional.

 


Rafael Tomaz de Oliveira, diretor de ensino, pesquisa e extensão da Unaerp convida à reflexão sobre os melhores caminhos para uma formação cidadã no ensino superiorRafael Tomaz de Oliveira, diretor de ensino, pesquisa e extensão da Unaerp convida à reflexão sobre os melhores caminhos para uma formação cidadã no ensino superior

 

“Os cursos técnicos-profissionalizantes são mais aliados do que antagonistas nesta tarefa. Cumprem uma importante função social, ao qualificar pessoas para o mercado de trabalho, oferecendo uma possibilidade de melhora nas suas condições socioeconômicas. Por outro lado, um bom curso técnico pode abrir as portas da curiosidade intelectual do aluno que, a partir do contato técnico com um determinado conjunto de saberes, pode se interessar por seguir com maior profundidade em seus estudos, até o ponto do desenvolvimento científico”, avalia Oliveira. 

 


Patrícia Rodrigues Miziara Papa, pró-reitora de ensino e inovação do Centro Universitário Barão de Mauá, destaca que o mundo do trabalho é composto por níveis distintos de conhecimento. “Privilegiar apenas um nível em detrimento de outros pode criar dificuldades a longo prazo”, comenta.

 

Em sua análise, o ensino superior cria a oportunidade de desenvolver o pensamento científico, o raciocínio crítico e, portanto, de trabalhar formas mais elaboradas de produção do conhecimento. “Olhando para o globo, verificamos que os países que apresentam índices mais elevados de desenvolvimento social e econômico são aqueles com ensino superior forte. É importante destacar que muitas descobertas e inovações, que impactam diretamente a sociedade, nascem nesse nível de ensino, afinal, são as instituições de ensino superior que fazem a conexão entre conhecimento, sociedade e mercado de trabalho”, destaca a pró-reitora.

 


Na mesma linha de raciocínio, Valéria Tomás de Aquino Paracchini, reitora do Barão de Mauá, avalia que o ensino superior tem um papel fundamental como provocador de inovações, pois trabalha de forma indissociável com o ensino, a pesquisa e a extensão.

 

“Se consideramos que é nesse nível de ensino que estimulamos a capacidade crítica e reflexiva das pessoas acerca do mundo em que vivemos, é porque almejamos que, nas mais variadas áreas do conhecimento, possam buscar soluções para os problemas enfrentados. Certamente essas soluções não passam por repetir o passado, mas por inovar, por pensar e agir considerando novas maneiras de entender a sociedade e suas demandas em constante mudança. Os profissionais mais desejados são aqueles capazes de solucionar problemas complexos e, para tal, é preciso desenvolver competências e habilidades que promovam o pensamento criativo. O ensino superior é o promotor desse desenvolvimento”, detalha Valéria.

 


Na avaliação de Valéria Tomás de Aquino Paracchini, reitora do Barão de Mauá, o ensino superior tem um papel fundamental como provocador de inovações

 

Ensino técnico


José Marcelino de Rezende Pinto, especialista em políticas voltadas para a educação do departamento de Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP, da Universidade de São Paulo (USP), afirma que o “bom ensino médio” deve dar condições de ingresso à educação superior e preparo para o mundo do trabalho, garantindo autonomia intelectual e pensamento crítico.

 

“Hoje, mal e mal, o ensino médio cumpre o inciso I do art. 35 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ele ainda é um grande ‘cursinho pré-vestibular’, que pouco serve para a vida”, alerta. O artigo a que se refere o professor garante que o ensino médio tenha, como uma de suas finalidades, “a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos”. 


O déficit na educação para a formação de um ser humano crítico e com autonomia intelectual é um problema que permeia todas as instâncias do ensino no país. O desafio também prejudica o ensino técnico que, por muitas vezes, sofre preconceito por ser erroneamente posto em comparação ao ensino superior. Ambos possuem seu valor, mas correspondem a categorias distintas de saberes e finalidades.

 


José Marcelino de Rezende Pinto, especialista em educação, reflete sobre o papel do ensino na formação cidadã

 

A professora Adriana Nascimento, coordenadora de graduação do Centro Universitário Moura Lacerda, frisa essa diferença. “É preciso esclarecer cada vez mais o jovem sobre como essas modalidades podem impactar e fazer sentido em seus projetos de vida. Além disso, é preciso também verificar em que áreas pode haver, eventualmente, essa ‘competição’, pois muitas vezes, o ensino técnico é um caminho que antecede o ensino superior e, ainda, leva um aluno mais bem preparado para a graduação, o que aumenta as suas chances de concluir sua formação com maior excelência. Portanto, o melhor caminho é sempre se informar sobre as possibilidades disponíveis, conversar com profissionais da área, visitar instituições de ensino e planejar os passos na carreira acadêmica”, aconselha.


Segundo Thalita Indelicato, reitora do Centro Universitário Estácio de Ribeirão Preto, um curso técnico, pode elevar a renda média do trabalhador brasileiro em 18%.  Já o ensino superior pode elevar a remuneração em uma média de 144% acima da dos que terminaram o ensino médio. “A dimensão educacional é um imperativo ao longo de toda a avida, os profissionais hoje formados são desafiados por novos problemas e novas formas de solucioná-los e os direcionam novamente ao processo de aprendizado”, pontua. Sobre um certo ar de preconceito que recai sobre o ensino técnico, o professor José Marcelino Pinto faz um resgate histórico:

 

“No Brasil, os 400 anos de escravidão deixaram uma terrível marca de desprezo pela formação técnica, associada, equivocadamente, ao trabalho manual, considerado como inferior, coisa de ‘preto’, de escravo, no ethos da ‘casa grande’. O Brasil precisa, sim, expandir muito suas matrículas de ensino médio técnico, mas não na lógica do mercado, esta entidade sobrenatural que esconde interesses privados focados apenas no lucro”, esclarece o professor. 

 


Thalita Indelicato, reitora da Estácio, destaca a remuneração média dos formandos no ensino superior

 

Formação humanística


Um número significativo de Instituições de Ensino Superior escreve em seus projetos político-pedagógicos que estão comprometidas com um princípio conhecido como formação integral do ser humano. “Isso significa que, para o ensino superior, não basta formar bons técnicos ou bons pesquisadores. É necessário que a habilidade técnica e a acurácia cientifica seja permeada, também, por uma formação humanística que significa, em largas linhas, a ação de cultivar o hábito da leitura e da escrita, de modo a colocar em questão os grandes problemas que afligem o ser humano. Ou seja, questionar o sentido da convivência; abertura para o outro, para o diferente e sua importância para o convívio mútuo”, comenta o professor Rafael Tomaz de Oliveira da Unaerp. 


Independentemente da especialidade ou área de saber, esses são problemas que atravessam o ser humano. “A capacidade de desenvolver um bom repertório para buscar soluções é algo que faz a diferença para um bom profissional, que inevitavelmente terá que liderar equipes, mediar conflitos entre pessoas, conduzir complexos processos de tomada de decisão e, acima de tudo, se comunicar com o público interno de sua organização e com a comunidade externa a quem, eventualmente, tenha que prestar contas”, pontua Oliveira.  

 

Nas universidades estaduais paulistas, 98% dos docentes são doutores


Em uma reflexão parecida, Marcelino Pinto reforça que a educação superior só faz sentido se, além de garantir uma formação sólida, permitir aos formandos batalhar por uma vaga no mercado de trabalho, fomentar nos jovens o conhecimento aprofundado dos grandes desafios do Brasil e o engajamento na luta para que o país amplie seus postos de trabalho qualificados. “Isso é formação para cidadania, a única possível de dar um horizonte para a juventude do país”, conclui. 

 

Raio-X do ensino superior

Um estudo publicado pelos pesquisadores Carlos Eduardo Bielschowsky (UFRJ) e Nelson Cardoso Amaral (UFG) mapeou o custo médio por aluno das 2.537 instituições de educação superior brasileiras, dividindo-as em segmentos — tanto públicos quanto privado. O custo anual médio de um estudante nas universidades estaduais paulistas é de R$ 18,4 mil, enquanto nas universidades particulares é de R$ 13,1 mil.

 

Contudo, o montante é ainda menor nos centros universitários e faculdades particulares com, respectivamente, R$ 12 mil e R$ 10 mil sendo investidos, em média, por aluno anualmente. Nas universidades públicas, 85,7% dos professores de dedicam em tempo integral à academia; já no setor privado o número cai para 25,9%. Professores do setor público podem ganhar até cinco vezes mais do que os da rede particular.

 

O salário e a dedicação em tempo integral à pesquisa estão ancorados, entre outros fatores, na titulação do profissional. Além da aula em si, um professor doutor dedica a maior parte do seu tempo à pesquisa. Ele coordena projetos de pesquisa, laboratórios, orienta alunos, publica artigos e participa de eventos científicos. Nas universidades públicas, ainda de acordo com a pesquisa, 65,9% dos profissionais são doutores — sendo que nas universidades estaduais paulistas, este número sobe para 98,4%. No setor privado, são 24,1% doutores, com o número subindo nas instituições confessionais para 47,3%. 

 


Adriana Nascimento, coordenadora de graduação do Moura Lacerda, destaca os pontos positivos do ensino superior e do ensino técnico

 

Enem


O número de pessoas inscritas para o Enem vem caindo desde 2017. O recorde de inscritos foi em 2014, quando 8,7 milhões de pessoas se candidataram. Em 2017, forame 6,1 milhões. Mas, em 2022 esse número caiu para quase a metade, com pouco mais de 3,3 milhões de candidatos. Agravado pela pandemia do novo coronavírus, o ano de 2021 foi o que apresentou o menor interesse pelo Enem desde 2005, com 3,1 milhões de inscritos. O total foi inferior até ao ano de 2009, quando o exame passou a permitir a entrada na maioria das faculdades. Antes disso, o Enem era feito apenas para testar os conhecimentos dos concluintes do ensino médio.

 

Para Oliveira, esses números devem ser analisados com cautela. Os dados podem representar uma defasagem no ensino médio, falta de interesse pelo ensino superior e/ou problemas estruturais de ordem social e econômica, além de medidas governamentais erráticas que abalaram a confiança do exame nos últimos quatro anos. 


Fotos: Freepik/Divulgação/Revide

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