
Meu pai Haroldo
Nascida e criada em Ribeirão Preto, a premiada jornalista Cláudia Collucci registra, em sua conta numa rede social, o afeto redescoberto pelo pai, ativo e lúcido com quase 95 anos
"Sabe do que sinto saudades, minha filha? Do trabalho, de suar a camisa e, à noite, de tão cansado, dormir pesado, um sono só. Tenho saudade do gado, de madrugar para tirar leite. A gente pega amor nos bichos, e a saudade é pra vida toda, tem dias que chega a doer no coração. Uma das coisas mais ruins de ficar velho é a gente não poder fazer mais o que gosta e o que sempre fez."
O desabafo acima, registrado em uma das últimas postagens no Instagram da premiada jornalista Cláudia Collucci, é de seu pai, Haroldo Collucci, que completa 95 anos em junho – quase todos passados “na roça”, mexendo com terra e “criação” (de gado e galináceos). Desde 2017 a jornalista nascida e criada em Ribeirão Preto tem registrado, em sua conta na rede social, seu novo olhar sobre o pai, de quem já foi mais distante. São posts esporádicos, já que a jornalista só os faz quando está de visita à chácara da família, onde cresceu – o que nem sempre ocorre mais de uma vez no mês com ela morando na capital paulista, onde trabalha na redação do jornal Folha de S. Paulo.
Mas, apesar de serem em menor número que os demais registros, de caráter profissional ou turístico, aqueles sobre “seo” Haroldo fazem muito mais sucesso. “Os meus amigos em São Paulo, todo mundo que encontro, fala: ‘Eu acompanho o seu pai’. Até fontes que entrevisto, médicos que me seguem [no Instagram] comentam: “Nossa, seu pai, hein...”, conta Cláudia. Ela acredita que chamam a atenção por mostrarem um idoso perto dos 100 anos ainda ativo e lúcido, mas sua escrita concisa e tocante, que vai direto ao ponto de maior interesse humano em qualquer narrativa, também tem muito a ver com isso, pois transborda de afeto.
A jornalista conta que até nove anos atrás, quando sua mãe, Regina, faleceu de um câncer de fígado descoberto tardiamente – só apresentou sintomas quando muito avançado –, sua relação com o pai era de muito respeito, mas de pouca proximidade. Muito por conta do perfil autoritário de educação que Haroldo apreendeu dos próprios pais. “Eu contava tudo para minha mãe, mas para ele era filtrado. Não podia falar de namorado, por exemplo. Então, quando eu vinha visitar, minha mãe é quem ficava esperando pra gente passear, ir a barzinho tomar cerveja, a shows, cinema. Já com meu pai, era ‘oi’ e um papo muito rápido”, conta Cláudia.
O luto favoreceu a aproximação entre pai e filha. “Eu já tinha trabalhado minha relação com ele na terapia, para chegar mais perto desse homem, desse menino [que ele foi] que era espancado pelo pai alcoólatra, começou a trabalhar muito cedo e teve uma vida dura. Para você ter uma ideia, o primeiro abraço que ele lembra de ter recebido, na vida, foi de uma professora, no primeiro ano da escola. Ele estava chorando e a professora perguntou por quê. Ele contou que sua avó havia falecido. A professora o abraçou e lhe deu de presente um lápis. Ele lembra disso até hoje e ainda chora ao contar”, emociona-se Cláudia.
Segundo ela, o resgate emocional desse pai se deu mais em uma relação de cuidado. Não divide suas angústias com ele, por exemplo. Até porque, após a morte de seu irmão mais novo [quando ele tinha 8 anos de idade e, Cláudia, 10], desenvolveu um instinto de poupar os pais de preocupações. “Porque eu vi a dor que foi a perda daquele filho. Minha mãe passou anos indo ao cemitério todo dia. Meu pai também chorou anos e chora até hoje”, recorda.
#admiração
Jornalista especializada em Saúde, Cláudia está habituada a ver pessoas envelhecendo mal e com muitas limitações. Dirigir seu novo olhar sobre um pai tão ativo, aos 87 anos – idade dele quando ela iniciou as postagens – despertou orgulho. “Dessas delicadezas que ele tem também”, emenda. “Embora sem estudo e criado em meio a toda aquela rudeza, quando ele fala dos passarinhos, dos ninhos, do tempo da plantação, das estações, que tal passarinho gosta de tal fruta e a formiga carrega não sei o quê... Fui ficando cada vez mais encantada com essas coisas miúdas, que a gente não percebe no dia a dia porque está sempre correndo e não presta atenção. Fui começando a aprender muitas coisas com ele e me deu vontade de compartilhar”, conta.
As postagens têm sido uma forma de a jornalista validar sua admiração, nascida desse olhar novo sobre o mesmo pai de sempre. É como se quisessem dizer: “olha, eu tenho um baita orgulho desse homem”. “É um homem simples, da roça, que fez até a quarta série do primário, mas tem tanta sabedoria e me ensina tanto sobre tantas coisas, como resistência e resiliência, que tive vontade de mostrar para o mundo. E está sendo muito legal, porque tem uma repercussão enorme”, declara.
Além disso, “seo” Haroldo envelhece de uma forma muito mais saudável que a média dos idosos de sua idade. Segundo Cláudia, mesmo com as limitações de saúde, como uma insuficiência cardíaca controlada, surdez (“ele se recusa a usar aparelhos auditivos”) e cegueira de um olho devido à catarata (“operou um, ficou ótimo, e se recusa a operar o outro”), ele luta para manter sua autonomia e se recusa a ter um cuidador. “Só aceitou que contratássemos uma funcionária pra cuidar da casa e da comida”, afirma a jornalista.
#autonomia
Como Cláudia já descreveu em uma crônica, respeitar a autonomia dos mais velhos é outra coisa que tem aprendido com o pai. “Mesmo sabendo que, muitas vezes, ela vem acompanhada da teimosia e, invariavelmente, há um preço alto a pagar”, escreveu. Conta ainda que, há quatro anos, ele caiu de um abacateiro de 5 metros enquanto fazia uma poda e, milagrosamente, não fraturou nada. “Hoje, eu e minha irmã [Eliana, quase dois anos mais nova] tentamos nos antecipar. O mato está crescendo? Precisa podar alguma coisa? Já chamamos alguém para fazer o serviço sem avisá-lo. É melhor ouvir as broncas dele do que pegar a estrada em desespero sem saber o que encontrar no Pronto-Socorro”, continua.
Seo Haroldo também é resistente a médicos. Na mesma crônica, a jornalista narra a primeira e última consulta dele com um geriatra. Ficou indignado quando o médico iniciou testes cognitivos e de coordenação motora. “Ao cardiologista ele vai sem reclamar desde o primeiro infarto, aos 80 anos. Há oito, ganhou também um marcapasso no peito. Reclama, mas toma os remédios prescritos”, emenda a filha.
Ao mesmo tempo, com todas as diferenças etárias e de contexto de vida, Cláudia afirma entender o temor do pai em depender dos outros, mesmo sendo das próprias filhas. “Encarar o declínio de alguém que a gente ama também nos faz refletir sobre a nossa própria vida, valores e sobre como queremos ser cuidados na nossa velhice, sobre a nossa finitude”, reflete.
#raízes
Fiel às suas origens, Haroldo mantém, entre a rua Pará e a Via Norte (avenida Eduardo Andréia Matarazzo), no bairro Ipiranga, zona Norte de Ribeirão Preto, talvez a única propriedade ainda com atividade rural das redondezas. Seus avós estavam entre os imigrantes italianos atraídos à região pelos baixos valores das terras. “Toda a Vila Albertina era da minha família, dos avós, dos tios e dos meus pais. A estrada de ferro passava na margem do rio, né? No fim, sobraram 2 alqueires de terra aqui. Aí, fizeram a Via Norte, que tomou metade da chácara”, lembra Haroldo.
Ele conta que seu pai manteve a atividade rural na propriedade após a morte de seus avós, mas faleceu cedo. Viveu poucos meses convalescendo de sequelas de um AVC, sofrido aos 50 anos de idade. Antes mesmo da morte dele, Haroldo – mais velho de cinco filhos – assumiu, com apenas 17 anos de idade, as funções do pai, na lida e na família. “Não foi fácil. Eu olhei meus irmãos, que eram menores, até os 18”, conta.
Sem conceber outro ofício, também continuou produzindo alimentos e criando gado na propriedade. “Antigamente a gente não comprava quase nada. Plantava arroz, feijão, alho, cebola, criava porco, gado. Enchia aquelas latas de gordura, porque não tinha geladeira e era tudo guardado na banha. O que não comia, vendia ou ia para o pasto alimentar o gado”, lembra.
Em 1975, o irmão que trabalhava com Haroldo na chácara quis parar de mexer com a terra. Venderam, então, o gado e dividiram o dinheiro. “Ele comprou uma perua e eu continuei na luta”, conta. Com o tempo, a região em torno da chácara foi se adensando e sendo urbanizada, mas ele seguiu trabalhando “na roça”, como diz. Credita à disciplina que tem com a própria alimentação sua saúde e lucidez aos 95. “Tem que saber se dosar em tudo, né, fia? Tanto alimentação quanto bebida. Eu acredito, senão não estaria mais aqui não”.
Conta que já escapou da morte inúmeras vezes, por doenças na infância, picadas de aranhas e escorpiões, tétano, ataques de ladrões, septicemia por erro médico e dois infartos. Diz acreditar em múltiplas existências e na mediunidade da filha mais nova, que um dia lhe disse que o irmão já havia reencarnado – chora até hoje a perda desse filho, que caiu dentro do poço da propriedade tentando recuperar uma pipa. “Esse mundo aqui tem muito mistério, fia. Eu acredito: se eu estou aqui ainda [algum motivo deve ter]. Eu acho que existe muita coisa que a gente ainda não sabe”, afirma.
Atualmente, ressente-se por não conseguir fazer mais na propriedade, que ainda conserva uma horta, um pomar, o poço e criação de galinhas. Lidar com a terra sempre foi seu trabalho e seu prazer. “O dia em que não pode, fica desgostoso”, entrega a filha mais velha. “Vou te falar fia, a vida não é fácil não”, diz à repórter. “Com 95 anos a coisa ‘tá pesando. A cabeça fala: ‘vai’. As pernas: ‘Não, não dá mais’”. E cai na gargalhada.
Cláudia Collucci