
Solidariedade sem fronteiras
Conheça o trabalho de organizações da sociedade civil no acolhimento de imigrantes e refugiados que chegam a Ribeirão Preto sem perspectivas de futuro
A exemplo de todos os brasileiros, os ribeirãopretanos têm assistido, via noticiários, à escalada dos conflitos na Ásia e no Oriente Médio gerarem milhares de refugiados em busca de acolhimento por outros países, sem atentarem para uma realidade semelhante bem mais perto. Desde 2012, Ribeirão Preto tem recebido cada vez mais imigrantes e refugiados, em fuga de países de dentro e fora da América Latina – principalmente haitianos e venezuelanos, além de cubanos e afegãos em menor quantidade. Criada pelo governo brasileiro, a Operação Acolhida, com sua estratégia de Interiorização (leia a respeito no quadro à direita), tem sido responsável pela chegada de muitos deles à nossa região metropolitana.
A necessidade de acolhê-los tem levado à mobilização de grupos de voluntários da sociedade civil, como o da OSC (Organização da Sociedade Civil) Mudando Vidas, a ONG Planeta de Todos e o braço local do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). Nossa reportagem foi conhecer de perto o trabalho dessas organizações para dar suporte a estrangeiros que chegam, muitas vezes, emocionalmente abalados – por terem se forçado a abandonar seus lares por uma jornada rumo ao desconhecido –, sem nenhuma perspectiva de futuro e, geralmente, sem sequer conhecer nosso idioma.
Acompanhe:
HAITIANOS
A legalização precisa ser o primeiro passo no processo de acolhimento de imigrantes, por isso todas as organizações citadas mantêm parceria com a clínica de Direito Migratório – atividade de extensão da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP) –, que, sob coordenação da professora Cynthia Soares Carneiro – mestre e doutora em Direito e Direito Internacional, respectivamente –, presta assessoria jurídica gratuita aos que chegam à cidade. Os serviços prestados visam à regularização imigratória de estrangeiros com dificuldades para lidar com essa burocracia, por razões que vão desde o desconhecimento da língua até a dificuldade de acesso às plataformas de órgãos públicos na internet, que não são muito “amigáveis”.
De acordo com Cynthia, a partir de 2015 o projeto passou a ser procurado para assessorar juridicamente grupos de haitianos que chegavam ao Brasil em situação de vulnerabilidade, por conta do terremoto que instalou o caos em seu país, em 2010. Porém, eles não foram recebidos como refugiados. Para acolhê-los, o governo brasileiro estabeleceu, por meio de portarias interministeriais, um visto de Acolhida Humanitária, que demanda a obtenção de uma Autorização de Residência. A primeira autorização (residência temporária) tem validade de dois anos. Ao final desse prazo, se não houver atraso de nenhum dia no pedido de renovação – deve ser feito antes do vencimento –, a autorização pode ser transformada em “permanente”, com prazo de renovação de dez anos. “Mas são cobradas duas taxas – de processamento do requerimento e da emissão do documento (CNRM) –, além de multas por atraso. Isso pode impedir a regularização migratória, se é uma família, por exemplo. A maioria das pessoas que atendemos ganha menos de um salário mínimo”, comenta a professora.
Segundo ela, acontece de muitos imigrantes só conseguirem trabalhos muito aquém de suas qualificações, com salários menores em comparação aos pagos a brasileiros, deixando-os sem condições de arcar com a cobrança de tais taxas. “Sem saber que tem direito a uma declaração de vulnerabilidade econômica que a isenta, a pessoa vai renovar a carteira de registro imigratório e descobre que a taxa é de R$ 470, por exemplo. Sem ter o dinheiro, ela trabalha mais um tempo para juntar o valor, mas, quando volta para pagar, dá de cara com a multa por atraso. Em seis meses, o que era R$ 470 foi para R$ 5 mil”, explica.
Ainda de acordo com Cynthia, o projeto até pode recorrer à Defensoria Pública da União (DPU) – com a qual mantém parceria – para contestar a cobrança na Justiça, mas principalmente os haitianos nunca aceitam, por acharem que “aí sim a Polícia Federal vai ficar brava com eles”. “Muitos foram embora do Brasil por não conseguirem renovar os documentos, apesar de terem o benefício da acolhida humanitária.”, conta.
VENEZUELANOS
A partir de 2021, a adesão de Ribeirão Preto à Operação Acolhida passou a atrair à cidade muitos venezuelanos, que se dividiam entre dois perfis de características opostas: o de classe média, com qualificação – curso técnico ou diploma universitário – que já chegavam documentados e com empregos formais arranjados; e os de indígenas warao, que apresentavam vulnerabilidade extrema. No primeiro caso, o problema passou a ser o acolhimento dessas pessoas de forma adequada, segundo a professora Cynthia. “Nós os ajudamos a renovar seus documentos para manterem seus trabalhos formais, mas a renovação de diplomas é um gargalo, por ser caro, burocrático e com pouca flexibilidade”, diz ela.
No outro extremo, grupos de indígenas warao chegavam em condições “precaríssimas!”, sem contar com apoio de nenhum programa de acolhimento. Viajavam, segundo a professora, seguindo a trilha dos venezuelanos não indígenas. “Eles entravam no Brasil por Rondônia e Roraima. Todos os que estão em Ribeirão Preto vieram de Goiânia. Olha a distância! A maioria não é alfabetizada e sequer fala espanhol ou português”, pontua a professora.
Desde que chegaram à cidade, em meados de 2021, os waraos começaram a receber suporte de voluntários da sociedade civil, entre eles a psicóloga Helen Cristina da Silva Morenghi – à época atuando no projeto Emancipa – hoje coordenadora do serviço com indígenas na OSC (Organização da Sociedade Civil) Mudando Vidas. Ela explica que a organização lhes presta um serviço “biopsicossocial”, pautado no objetivo de desenvolver neles autonomia e protagonismo.
“No começo, fizemos muita pressão e conseguimos que a Prefeitura cedesse um espaço de moradia, para tirá-los de albergues e das ruas. Hoje, contam também com água, energia elétrica e internet na moradia coletiva, mas a alimentação é por conta deles, porque as cestas básicas recebidas vêm com o mínimo do básico e duram muito pouco”, conta Helen, que, atualmente, tenta fomentar o artesanato como fonte de renda entre as mulheres warao – antes, para garantir ao menos a proteína [carne/ovos] do dia nas refeições dos filhos, as mulheres saíam fazer coleta no trânsito. A OSC também já conseguiu inserir 11 homens no mercado de trabalho local, mas ainda há muito o que fazer e os desafios são inúmeros.
DESAFIOS
Entre as dificuldades com que a Mudando Vidas precisa lidar para assistir os warao, a principal é financeira, segundo o fundador e presidente da OSC, Ricardo Rogério Tostes. A verba semestral repassada pela Prefeitura via programa “Cidade Acolhedora”, é 70% gasta em Recursos Humanos, para pagamento de funcionários. O restante é gasto com produtos de limpeza, manutenção da moradia, gasolina para o único veículo à disposição. Esse quadro acaba desmotivando os profissionais remunerados, alguns dos quais acabam desistindo do trabalho a cada vencimento do contrato firmado com o município – precisa ser renovado semestralmente – para recebimento da verba.
Para mudar essa realidade, Helen e Ricardo tentam conseguir a mudança da tipificação do serviço, de “projeto” para “acolhimento” de imigrantes. “Com isso, por lei, será obrigatório aumentar nosso repasse de recursos. Hoje temos apenas cinco funcionários para cuidar de 72 pessoas e somos o único equipamento que cuida de criança, adolescente, homem, mulher e idoso de uma tacada só [geralmente existem programas separados para cada público-alvo]. Para podermos crescer e receber repasses de emendas e verbas, precisamos dessa tipificação”, explica Ricardo. Ele conta ainda que, no final do ano passado, a OSC perdeu uma verba municipal de R$ 98 mil, autorizada por projeto do vereador Roger Renan da Silva – o Bigodini – por ainda não ter a tipificação certa.
“Sem a tipificação como ‘acolhimento’, conseguimos um recurso via edital do CMDCA (Concelho Municipal da Criança e do Adolescente), que nos garante apenas uma pedagoga cumprindo 20 horas semanais. Com o serviço tipificado, poderíamos concorrer a um valor muito maior e garantir as refeições das crianças e adolescentes”, acrescenta Helen. Segundo ela, já foram enviados vários ofícios requisitando a mudança à Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) de Ribeirão Preto. Ricardo tem esperança de que a OSC acabará atendida nesta questão, pois vê “boa-fé” na atual administração. “O secretário Júlio Balieiro é muito solícito conosco”, diz.
Questionada sobre o suporte prestado a imigrantes e refugiados que chegam à cidade, a Semas respondeu, por meio de nota enviada por sua Assessoria de Comunicação Social, que “a atual gestão da Prefeitura de Ribeirão Preto reafirma seu compromisso com o acolhimento humanizado de pessoas refugiadas de outros países, reconhecendo a importância de garantir condições dignas de recepção e integração social”, e que o município disponibiliza toda a estrutura da rede de Assistência Social, incluindo os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) e a Central Administrativa de Benefícios Sociais.
AFEGÃOS E CUBANOS
Em 2022, a clínica de Direito Migratório da USP também passou a assessorar juridicamente refugiados afegãos e cubanos, dentro de uma parceria proposta pelo Acnur. De acordo com a coordenadora Cynthia, os cubanos também chegavam altamente qualificados e ainda enfrentam, como os venezuelanos, dificuldades para validação de seus diplomas por aqui. “Por conta disso, temos casos de médicos que estão trabalhando como cuidadores, por exemplo”, pontua a professora.
Em Ribeirão Preto, é a ONG Planeta de Todos – braço da empresa Cartão de Todos – que tem acolhido imigrantes afegãos e cubanos. De acordo com o diretor executivo da ONG, o jornalista André Naddeo, a decisão de trazer para a cidade o modelo de atuação consolidado em países como Grécia e Itália surgiu na esteira da crise dos afegãos, que chegavam a ficar semanas acampados no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, aguardando acolhimento. “Nosso país foi o único que deu visto humanitário a eles depois que o Talibã retomou o poder, em agosto de 2021. A partir disso, vieram vários afegãos para cá”, lembra.
A atuação da ONG busca, primeiramente, prover o básico ao refugiado, que é ter onde dormir, o que comer e um chuveiro quente. Em contrapartida, o acolhido precisa cumprir algumas condições previstas em contrato, relativas a comportamento, limpeza e regras condominiais – como a de proibição de visitas e de consumo de álcool e outras drogas na moradia comum. “Entendemos que lugar seguro é o primeiro passo e, a partir disso, vamos introduzindo uma série de ferramentas sociais, como curso intensivo de português e workshops, com o objetivo de torná-los empregáveis”, explica André.
Desde março de 2024, quando o trabalho começou por aqui, a Planeta acolheu sete afegãos, dos quais cinco moram em Ribeirão Preto, estão empregados – três deles em unidades do Cartão de Todos – e falam português. Todos estão emancipados, ou seja, não dependem mais da moradia provisória e estão tocando as próprias vidas autonomamente. Para este ano, a ONG espera mais dez pessoas vindas de Afeganistão e Cuba. Algumas já chegaram, como o casal de cubanos formado pelo analista de informática Felix Nelson Pantoja, 35 anos, e a cozinheira Claudia Garnier Bayer, 30, que se consideram refugiados políticos.
Casados há cinco anos, Felix e Claudia deixaram a pequena cidade de Cienfuegos, em Cuba, em 24 de janeiro deste ano. Saíram discretamente, como se fossem turistas em visita à Guiana, e confiaram suas vidas a “coiotes” (guias de imigrantes clandestinos) para fazerem a travessia da fronteira com o Brasil. Até chegarem a Boa Vista (RR), enfrentaram horas de caminhada noturna por trilhas acidentadas de terra – incluiu a travessia de um rio –, sempre ouvindo sons de crocodilos, onças e cobras. “Foi uma viagem horrível e muito sofrida”, desabafa Claudia.
O casal afirma, porém, que faria tudo novamente se preciso, pois não havia mais condições de viverem em seu país de origem, onde a imprensa é censurada, a liberdade de expressão é tolhida, a economia é precária e eles não conseguiam trabalho há meses – foram demitidos após participarem de protestos. “Lá todos os empregos são públicos, arranjados pelo governo”, explica Claudia.
Chegando ao Brasil, o casal veio para Serrana, onde se hospedaram em casas de amigos. Quando a Planeta de Todos os encontrou, já tentavam há meses conseguir emprego, mas a barreira do idioma os atrapalhava. Ao ouvirem de Luna Andrade – coordenadora local da Planeta – que teriam casa, comida e cursos gratuitos até conseguirem se estabelecer por conta própria, até desconfiaram. “Não estamos acostumados a receber ajuda de desconhecidos, pois sempre costuma haver segundas intenções ou armadilhas por trás, do tipo: ‘vocês vão receber apoio, mas depois terão que trabalhar para nós por cinco anos’. Porque as coisas são assim em Cuba”, comenta Felix.
Quando falou à reportagem, o casal só não se mostrava mais feliz por conta das saudades dos parentes, com os quais conseguem se comunicar apenas uma vez por semana, em média. “Não sei se vocês sabem, mas em Cuba a energia elétrica é suspensa todos os dias, das 16h às 20h. E sem energia, não há conexão de internet. Por conta disso, a educação também é muito precária porque, sem eletricidade, as crianças não vão à escola. Abastecimento de água, então, tem dia sim, dia não”, descreve o cubano.
Por tudo isso, o casal compartilha o sonho de que, um dia, não seja mais necessário a ninguém deixar o próprio país para ter alguma perspectiva digna de futuro.
Entenda o que é ...
OPERAÇÃO ACOLHIDA: criada pelo governo brasileiro para atender refugiados e migrantes venezuelanos que chegam ao Brasil pela fronteira com o estado de Roraima;
INTERIORIZAÇÃO: uma das ações da Operação, facilita a transferência de imigrantes e refugiados para outras cidades e estados brasileiros que lhes ofereçam melhores oportunidades de trabalho, estudo e moradia ou onde possam se reunir com familiares e amigos;
REFÚGIO: proteção legal que todo país é obrigado a conceder a quem foge de uma situação comprovada de perseguição, de risco de morte ou de violação de sua integridade física no país de origem. No Brasil, é concedido pelo Comitê Nacional de Refugiados (Conare), que demora de quatro a cinco anos para dar resposta a uma solicitação. Enquanto ela não sai, o solicitante precisa ficar renovando seu protocolo anualmente – tem seis meses de tolerância em caso de atraso, mas sem cobrança de taxas ou multas. Quando tem o pedido concedido, torna-se imigrante permanente, só precisando renovar sua carteira de refugiada a cada dez anos, também sem cobrança de taxas ou multa por atraso. Em contrapartida, fica impedida de retornar ao país de origem e, sempre que precisar sair do Brasil, terá que pedir autorização, além de notificar quando entrar de novo.