Matéria prima da tequila começa a ser utilizada na produção de etanol
Agave, matéria prima da bebida mexicana, plantada no semiárido brasileiro vai começar a produzir etanol com potencial para mudar a economia bioenergética no país
“A revolução começou”, comemora o professor do Instituto de Biologia e coordenador do Laboratório de Genômica e Bioenergia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Gonçalo Pereira, enquanto a primeira biorrefinaria de agave começa a ser construída no sertão nordestino.
A usina é resultado de quase uma década de estudos do professor e de outros 70 pesquisadores que fazem parte do projeto Brave (sigla em inglês para Desenvolvimento da Agave Brasileira), que pretende transformar o Estado da Bahia no principal produtor de etanol do país, título que sempre pertenceu a São Paulo, principalmente pelo potencial de produção de cana-de-açúcar da região de Ribeirão Preto. E motivos para acreditar em uma profunda mudança no setor de energia nacional não faltam.
A agave é uma planta suculenta que tem mais de 200 espécies catalogadas. A mais famosa é a Azul, da qual se extrai o suco da parte central da planta para a produção de tequila no México. No Brasil, a espécie mais plantada é a Sisalana, cujas folhas são matéria-prima para o sisal, material usado na confecção de fios, cordas e tapetes. “Resistente à seca, a agave é uma planta com produtividade semelhante à da cana-de-açúcar, cultivada em regiões de semiárido, áreas com pouca geração de emprego. Podemos cultivá-la e construir uma cadeia produtiva parecida com a da cana e, além disso, implantar biorrefinarias baseadas no agave”, explica Gonçalo.
Essa possibilidade foi alcançada depois que os estudos avançaram e conseguiram chegar a uma cepa geneticamente modificada da levedura Saccharomyces cerevisiae, capaz de digerir a inulina, o principal carboidrato da agave, ampliando o potencial dessa planta para a produção de etanol. “Há um fungo patógeno da agave que se alimenta dela por meio de uma enzima específica. O que fizemos foi adicionar essa enzima à levedura, o que, de acordo com testes de laboratório, deu a ela a capacidade de transformar o açúcar da agave em etanol”, explica Ana Clara Penteado David, pesquisadora e autora do projeto de mestrado que deu origem à levedura geneticamente modificada.
“Com isso, a agave ganha potencial para aumentar o uso do etanol em automóveis normais, abastecer veículos híbridos com baterias movidas a esse combustível e também compor os combustíveis sustentáveis dedicados à aviação (SAF), com etanol como matéria-prima principal”, afirma Fellipe da Silveira Bezerra de Mello, pesquisador e um dos orientadores do trabalho.
A pesquisa foi financiada pela gigante multinacional Shell, que investiu R$ 30 milhões no estudo e na construção da nova biorrefinaria. Além de profissionais da Unicamp, a pesquisa conta com especialistas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
O Governo do Estado da Bahia lançou recentemente um edital em parceria com a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), que vai destinar R$ 2,6 milhões para incentivar o uso da biomassa residual da agave utilizada na fabricação de sisal. Segundo Ricardo Cappelli, presidente da ABDI, apenas 4% da agave é utilizada para a produção de fibra no estado da Bahia, com o restante sendo descartado.
Um novo projeto visa reaproveitar 95% da planta para a produção de biocombustível, impactando economicamente 20 municípios do Território do Sisal. O projeto, que será executado em 18 meses, capacitará 400 trabalhadores e disponibilizará sete tratores. Além disso, haverá mapeamento da capacidade produtiva local e qualificação técnica dos agricultores, com o objetivo de transformar a economia local e gerar mais empregos. “O objetivo é transformar a indústria local, potencializar e fomentar a economia. Isso é desenvolvimento do Brasil, com mais empregos”, afirma Ricardo.
Brasil é um dos maiores produtores de sisal do mundo (Foto: Feijão Almeida - Governo do Estado da Bahia)
HISTÓRIA
Segundo a Embrapa, a agave sisalana foi introduzida na Bahia em 1910, no município de Santaluz, mas sua exploração comercial começou apenas no final dos anos 1930. A boa adaptação da agave ao semiárido nordestino, onde as opções de cultivo são limitadas, transformou a planta em agente de transformação socioeconômica. Atualmente, estima-se que 700 mil agricultores familiares dependem do cultivo do sisal, gerando empregos e renda em uma região de baixo IDH (0,589). A Bahia é responsável por 90% da produção nacional, com cerca de 140 mil toneladas anuais em 68 municípios. O Brasil é o terceiro maior produtor do material no mundo, ficando atrás da Tanzânia e do Quênia. Grande parte da produção nacional é exportada.
Historicamente, a maior parte das espécies de agave é originária da região do México, onde povos pré-hispânicos cultivavam a planta para consumo e outros fins. Com a tecnologia da destilação levada pelos conquistadores ao México, começou-se a produzir uma bebida parecida com a que hoje é conhecida como tequila. Mais recentemente, a agave vem ganhando fama como opção saudável de adoçante. Mas no Brasil, desde sua implantação, a agave foi usada majoritariamente para a produção de sisal e como planta ornamental por paisagistas.
Cultivado em ciclos de cinco anos, a agave sisalana rende uma produção de 880 toneladas de biomassa de alta densidade energética por hectare. A planta também depende de menos água. Enquanto a cana-de-açúcar precisa de pelo menos 1.200 milímetros de chuva por ano, cada hectare da plantação de agave precisa de 300 milímetros, sobrevivendo a longos períodos sem precipitação. “Há um sistema bastante eficaz de captura de água na agave. As folhas possuem pequenas aberturas que se fecham com a luz solar e se abrem à noite, fazendo com que não haja uma grande perda de água, além da captura do gás carbônico, que é liberado dentro da própria planta durante o dia. Essa liberação forma ácidos no seu interior”, explica Gonçalo.
Outra diferença é que a agave demora entre três e cinco anos para a primeira colheita, enquanto a cana é colhida uma vez por ano. Após cinco anos, a agave pode render até dez vezes mais biomassa que a cana por hectare, segundo os pesquisadores. “A ideia é ir desde a planta até o processo industrial de produção de etanol de primeira geração, segunda geração e biogás. É um projeto totalmente inovador e com um potencial transformador enorme para uma região hoje muito carente”, afirma Marcelo Medeiros, coordenador de projetos de pesquisa e desenvolvimento da Shell Brasil.
REGIÃO AGUARDA RESULTADOS
Com a crise energética e as mudanças climáticas pressionando o Brasil, a busca por fontes sustentáveis de energia se intensifica. Especialistas apontam que a agave tem potencial para gerar até 30 bilhões de litros de etanol por ano no Brasil, volume similar ao produzido pela cana-de-açúcar e milho, com a vantagem de exigir menos água do que a cana, principal cultura encontrada na região de Ribeirão Preto. Mas há alguma chance de mudança na região? O professor de economia da Unesp de Jaboticabal, José Giacomo Baccarin, explica que ainda é muito cedo para entendermos como (e se) a agave vai mudar o cenário econômico no país.
“Para ameaçar o etanol da cana ou do milho, a produção do combustível de agave tem que se mostrar competitiva em termos de custo de produção. E isso ainda leva um tempo, pois há toda uma cadeia a ser analisada e testada”, explica o professor. Ele destaca que o potencial mais comemorado deve ser o de expansão da capacidade de produção de biocombustível no Brasil, já que “a agave é produzida em regiões proibitivas para a cana, como o semiárido”.
Para alguns especialistas, a agave pode funcionar como um complemento à produção de cana, sendo plantada em áreas menos adequadas para a cana-de-açúcar, aproveitando terras marginais. “Contamos com mais áreas de semiárido do que de floresta no mundo e ainda não desenvolvemos tecnologias específicas para esse tipo de solo”, explica Gonçalo Pereira. Essa diversificação poderia ser uma estratégia inteligente para lidar com as incertezas climáticas e a escassez de água que afetam o Sudeste. “As mudanças climáticas exigem movimentação do setor e acredito que essas mudanças devam sempre somar, quando o assunto é energia limpa”, afirma José Giacomo Baccarin.
Embora a agave apresente grande potencial, ainda é incerto o impacto em regiões como o interior de São Paulo e o Centro-Oeste, principais produtores de etanol do país. Enquanto o Nordeste avança na produção de etanol a partir da agave, o Sudeste enfrenta desafios maiores para sua implementação, como a adequação do solo. O engenheiro agrônomo e professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), Fábio Ricardo Marin, explica que algumas regiões do Estado de São Paulo possuem condições ideais para o plantio de cana-de-açúcar.
"Para um crescimento ideal, forte e vigoroso que garanta alta produção e rendimentos de açúcar, a temperatura média durante o dia deve ser entre 22 °C e 30 °C. A temperatura mínima para o ótimo desenvolvimento vegetativo deve ser de aproximadamente 20 °C. Abaixo disso, a produção é prejudicada. E essas são condições encontradas naturalmente na região de Ribeirão Preto, por exemplo", explica.
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