Guerra digital

Guerra digital

Tecnologia digital trouxe novos contornos ao conflito na Ucrânia e se tornou uma aliada eficiente aos tradicionais esforços bélicos na conquista de poder

* Entrevista publicada na edição 1.105

O mundo assiste aos horrores de um conflito geopolítico de raízes profundas e vive o temor das consequências que já impactam diversos países. Diante da face cruel que uma guerra pode revelar, um recurso trouxe novos contornos ao conflito na Ucrânia, que é o maior em território europeu, desde a Segunda Guerra Mundial. Compartilhadas quase em tempo real na internet, as imagens dos ataques russos comoveram o mundo. Porém, o universo digital também se mostrou uma importante ferramenta aliada aos tradicionais esforços bélicos em busca do poder. Estamos falando da guerra híbrida. Uma estratégia que vai além dos tradicionais carros de combate e mísseis. Eficiente em promover campanhas de desinformação, também foi uma ferramenta vital nos ataques cibernéticos à infraestrutura digital da Ucrânia, que tiveram início horas antes dos primeiros lançamentos de mísseis e movimentação de tanques. Por outro lado, a Ucrânia tem utilizado a internet com objetivo de comover a população, conquistar aliados e sensibilizar grandes marcas como Apple, Google, Meta, Twitter, YouTube no boicote à Rússia. A doutora em Ciência Política e professora de Relações Internacionais, Camilla Geraldello, explica a nova configuração geopolítica e os impactos causados pela guerra híbrida.

O conflito na Ucrânia envolve diversos atores políticos em nível mundial e regional. Quais os principais impactos geopolíticos e sociais para a população global?

No campo regional, ou seja, dentro da Europa, temos impactos geopolíticos e sociais que trarão uma reconfiguração da relação de forças europeias. Por exemplo, já vemos a Alemanha mudando de postura e se revelando um país bélico, diferente de um esforço que vinha sendo feito para demonstrar uma postura pacifista. Esse cenário já demonstra uma reconfiguração geopolítica dentro da Europa. No âmbito global, temos mudanças que ainda estão se consolidando, como a Rússia que tenta recriar o seu espaço socialista ou imperial. Essa manobra, embora aconteça em esferas regionais, influencia a política global, já que busca o afastamento de potências ocidentais, como os países da Europa Ocidental, bem como Estados Unidos, Canadá e Austrália. Podemos imaginar uma reconfiguração geopolítica global, pensando no apoio chinês à Rússia e, em menor medida, temos outros países se aproveitando desse conflito para lançar armamentos, agir de maneira intervencionista contra países que possuem disputas, como é o caso China contra Taiwan.  De forma geral, estamos falando do maior conflito do século XXI, sendo o de maior impacto em número de refugiados deste século, na Europa. Os reflexos sociais serão gigantes, principalmente para os dois países envolvidos. A Ucrânia que terá seu país devastado, população refugiada e para a Rússia, que sofre sanções econômicas, gerando miséria,  fome e racionamento.
 
As sanções impostas à Rússia têm surtido efeitos esperados?

Temos duas percepções diferentes sobre o que pode ser esperado em relação às sanções. É pouco provável que a Rússia possa retroceder, conversando pacificamente para finalizar a intervenção e aceitando termos impostos pela Ucrânia. No entanto, as sanções têm gerado um sufocamento econômico ao país. Vemos uma Rússia economicamente debilitada, em um curto espaço de tempo, por meio de medidas que refletirão em médio e longo prazo. Historicamente todos os países que receberam sanções durante conflitos, como exemplo Cuba, Coreia do Norte e Irã, continuaram suas ações confrontacionistas, sem retroceder. Pensando na resistência russa quanto às sanções, é interessante analisar até onde o governo chinês estará disposto a contribuir e prestar seu apoio à Rússia. Outro fator de peso, está na dependência de países europeus dos produtos russos, como petróleo e gás, que poderão influenciar no resultado das sanções. 

A segurança nacional passa a ter uma nova relevância no segmento das relações internacionais, comparando-se à economia e às finanças?

Continuará sendo relevante como em outros momentos históricos: na guerra fria, onde houve uma disputa entre duas superpotências ou nos ataques de 11 de setembro, momentos em que a segurança nacional foi colocada em risco. No entanto, mesmo tendo a questão da segurança regional europeia sendo reacendida como foco de disputa, vemos que outras questões, como a econômica, são pautas fundamentais dessa agenda.  

Como se deu o conceito do termo “guerra híbrida” e como ela está inserido no contexto das guerras atuais?

O conceito se tornou conhecido nos 2000. Além da guerra convencional ou antiga, que é travada sempre entre dois estados, por exércitos, surge um novo conceito, que é a “guerra não convencional” ou “guerra irregular”, que traduz uma nova forma de conflito. Nessa modalidade, existem outras formas de poder sendo incentivadas, como estados que não estão diretamente dentro da guerra, incentivando forças paramilitares ou grupos terroristas, além da utilização de novos tipos de armamentos. Nesse contexto surge o termo guerra híbrida, justamente por unir as antigas e as novas táticas de guerra. A questão cibernética está entre as novas ferramentas de guerra, onde há a criação de vírus e programas que agridem os sistemas inimigos, até mesmo a disseminação de fake news, que interferem na confiança da população. Percebemos que todas essas táticas estão presentes na guerra da Ucrânia. 

A combinação da tecnologia com os tradicionais esforços bélicos já trazem uma mudança no contexto de disputas de poder? O que podemos esperar sobre essa nova configuração?

Já mudaram e continuarão sendo cada vez mais intensos. Existe um aspecto que esquecemos de falar quando tratamos sobre guerra, que é a internet das coisas, ou seja, a interconexão digital de objetos cotidianos com a internet, que se tornará o padrão tecnológico, principalmente em países mais desenvolvidos, em pouco tempo. Teremos ataques mais perigosos e cada vez mais utilizados. Essa ferramenta atinge não somente alvos como usinas, mas diretamente a vida das pessoas. A tecnologia digital também pode ser uma ferramenta eficiente e pacífica, que pode, por exemplo, ser utilizada para um chamado à população, criando um sentimento nacional, uma comoção. Porém, nem mesmo com esse objetivo, existe um controle total dessa ferramenta. A partir da comoção, muitos transtornos podem acontecer, gerando um efeito conflitivo que não é possível mensurar. Uma estratégia que no primeiro momento pode parecer pacífico, mas que acarreta situações que fogem do controle ou se tornam são extremamente nocivas para um país. 

Os registros da guerra têm mobilizado apoiadores no mundo. O ciberativismo pode, em algum cenário, interferir os rumos da guerra?

Sim. Dentro do ciberativismo, temos subdivisões de grupos, como o hacktivismo que atuam nesse conflito, de forma não oficial. Nesse conflito, tanto russos, como ucranianos que possivelmente têm ligações com seus respectivos governos, promovendo suas ideologias políticas. Seja financiado de forma oculta pelo governo ou de forma voluntária, essas ações pode gerar efeitos maiores e catastróficos.

A União Europeia também criou uma equipe de ciberresposta para ajudar a Ucrânia. Como se deu esse apoio?

A Ucrânia passou a integrar um Centro de Excelência Cooperativa para ciberdefesa, da Otan e participa de forma colaborativa, mesmo não sendo membro da organização. O grupo trata de questões de defesa cibernética, tema de relevância há algumas décadas e que continuará atual por muito tempo. A Ucrânia colabora com o grupo devido a sua experiência em já ter sofrido ataques cibernéticos, antes mesmo da atual guerra ter início. Alguns analistas concordam que a Rússia já realizava, por meio de hackers com possíveis ligação com o governo, testes ataques contra a Ucrânia antes do ano de 2014. 

Podemos esperar que essas ameaças se espalhem também aos países que integram a Otan? Já existem registros de ataques nesse sentido?

É possível que aconteça. Não somente em países que integram a Otan, mas nos demais, como já vimos acontecer nos Estados Unidos, nos últimos anos. Não existe comprovação de onde partem esses ataques. Possivelmente são realizados por hacktivistas, não ligados oficialmente a governos, mas que podem sim ter essa ligação. Essa situação pode gerar preocupação por parte da população, mas lembramos que o cidadão comum não é alvo desses ataques, principalmente no Brasil. De todo modo, existem maneiras de proteção contra essa exposição. 

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