Tendência nas relações de trabalho

Tendência nas relações de trabalho

Na avaliação de Luciana Morilas, o crescimento do home office, as alterações na CLT e o fenômeno da pejotização são nuances que demonstram como o trabalho está mudando

Professora Associada da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP, mestre, doutora e livre-docente em Ética e Legislação Empresarial, Luciana Romano Morilas foi advogada por mais de 10 anos —nas áreas de direito do trabalho e de família —, antes de se tornar responsável pela área de Direito na FEA-RP e coordenar o grupo de pesquisa "Habeas Data - Grupo de Estudos e Pesquisa em Jurimetria". A professora também é membro da Associação Brasileira Elas no Processo (ABEP) e coordenadora da 9ª Região da ESA-SP.


À Revide, a professora falou sobre a evolução e o futuro das relações de trabalho no Brasil.  Luciana faz um resgate histórico do Direito do Trabalho. A docente explica que até a Revolução Industrial o trabalho era algo de pessoas que não tinham autonomia sobre sua própria vida — escravos ou servos. No século XIX, uma conjugação de fatores econômicos, sociais, políticos e ideológicos culminou na criação de um sistema de direitos protetivos. Percebendo que os trabalhadores não tinham condições de negociar em pé de igualdade com as corporações, surgiu a Organização Internacional do Trabalho (OIT), para deliberar regras de justiça. O Direito do Trabalho, enquanto um sistema de regras organizado por uma autoridade, surgiu para garantir condições mínimas de salubridade. 

 

Quais avanços você identifica no direito trabalhista nas últimas décadas?

 

Os avanços foram muitos, mas começaram há apenas um século. Temos hoje um sistema de direitos que garante aos trabalhadores condições mínimas de vida. A limitação a uma quantidade máxima de horas garante a saúde de quem trabalha e de quem está à sua volta, porque evita acidentes. Garante também uma produção com menos defeitos. Aliás, o direito do consumidor também começa a surgir com a Revolução Industrial, que gera produtos – e defeitos – em massa. Salário mínimo, licença-maternidade (que protege muito mais a criança que a própria mãe), discussões sobre desigualdade entre homens e mulheres, entre brancos e negros, que acontece não apenas nos salários, mas em todas as condições do trabalho. Os avanços foram muitos, mas ainda há muito a evoluir.


E quais retrocessos destaca?

 

Em 2017, a Reforma Trabalhista excluiu direitos dos trabalhadores com a promessa de gerar 5 milhões de empregos, o que não aconteceu. O principal retrocesso se refere à prevalência do acordo entre patrões e empregados sobre a lei (o negociado predomina sobre o legislado). O intervalo de almoço, por exemplo, podendo ser reduzido por acordo, gera um problema para a saúde do trabalhador. A jornada de trabalho de até 220 horas por mês sem hora extra (criação do banco de horas). A legalização da terceirização, na contramão do que vinha sendo aplicado pelo judiciário há anos. Resultado: trabalhadores mais cansados, produzindo menos e com menos qualidade em razão da baixa qualificação, da utilização tecnologia obsoleta e mal gerida, de investimentos equivocados e de burocracia excessiva (não só por parte do governo, mas por parte das próprias empresas). Quem recebe mal e tem um ambiente de trabalho desfavorável produz pouco. As consequências desse ciclo nefasto se espalham para toda a sociedade, minando até as relações familiares e sociais.

 

Quais mudanças nas relações de trabalho você destaca na atualidade?

 

O trabalho está mudando, sem dúvida.  O trabalho tradicional no escritório ou nas lojas das 8h-18h tende a desaparecer. A pandemia veio escancarar isso: o comércio continuou vendendo, mesmo com as lojas fechadas, favorecido pela revolução tecnológica; o deslocamento de casa até o trabalho diminuiu, devolvendo às pessoas algum controle sobre seu tempo para outras atividades; as empresas economizaram com espaço físico, energia elétrica do ar condicionado e cafezinho. E isso não tem relação com ser CLT ou não, com redução de direitos ou não.

O home office chegou para somar ou diminuir?

 

O home office existe no direito brasileiro desde 2011 e já estava até regulamentado pela própria Reforma Trabalhista. As empresas é que sempre tiveram muito receio de utilizar essa facilidade, porque existe no Brasil uma tendência muito grande pelo controle. O trabalho por tarefa pode substituir com vantagens o trabalho por hora, permitindo ao trabalhador utilizar com lazer as horas gastas no deslocamento, girando esse setor da economia tão negligenciado no Brasil, tido como um supérfluo, que intensifica a vida comunitária e impacta na criatividade. O home office veio para ficar e somar. O ideal é que as empresas formalizem essa contratação em um texto por escrito, com regras definindo se o trabalho será prestado por jornada, por produção ou por tarefa. Vejo algum desconhecimento, ou talvez uma falta de cautela, dos próprios empregadores nessas definições para seus trabalhadores – não precisa chamar de “colaborador” – quando isso na verdade facilita a redução de ruídos de comunicação e também em um eventual problema que surja durante a relação.

 

Com o que a empresa e o prestador devem estar atentos na contratação PJ?

 

A ideia de contratar uma pessoa jurídica implica principalmente que não há pessoalidade. Ou seja: o empregador não pode mais exigir que aquele trabalhador individualmente preste o serviço. Também não pode exigir que aquele trabalhador cumpra uma jornada fixa de trabalho. Se esses dois pontos ficarem comprovados, o empresário está sujeito a ter esse contrato desconfigurado e terá que arcar com o pagamento de todas as verbas que deveria ter pago durante o contrato de trabalho via CLT. Isso porque, são cinco pontos que caracterizam uma relação de emprego: pessoalidade, alteridade, subordinação, habitualidade, onerosidade. Muitos empregadores acreditam que vale a pena correr o risco de um pedido de vínculo de emprego, porque oferecem um acordo e o sobrevalor que deixou de ser pago configura lucro. Só falta colocar nessa conta um aspecto que pouco mensurável: o reflexo disso para o clima organizacional, uma das coisas que reflete diretamente na produtividade do trabalhador.

 

A redução da jornada de trabalho é um desejo para o trabalhador e um bicho de sete cabeças para o empregador, como ajustar essa equação?

 

O empregador precisa flexibilizar sua forma de ver o mundo e a relação de trabalho e, com isso, o bicho vai ficar menos assustador. Em 1988 houve uma redução da jornada de trabalho no Brasil, de 48 para 44 horas semanais. Nós nem ouvimos falar sobre isso hoje em dia porque não gerou nenhum problema para as empresas e trouxe um grande benefício aos trabalhadores e outros setores da economia, como o de lazer. Trabalhador feliz representa cliente acolhido, melhor atendido, que compra mais. Um empregador mais controlador, que coloca medo nos seus empregados, gera um ambiente mais tenso onde se rende menos. Só que isso implica uma dedicação do empresário para estudar técnicas de administração e de liderança. Quem prefere ser um chefe em vez de ser um líder está perdendo muito nos novos modelos de trabalho. 

 

Quais benefícios enxerga na redução da jornada de trabalho? 

 

Para o empresário, aumento da produtividade, trabalhadores mais satisfeitos e redução de faltas; para o trabalhador, melhoria da saúde, mais tempo para gastar com lazer ou com instrução; para o Poder Público, redução com a utilização do sistema de saúde, aumento da quantidade de empregos, melhoria da qualificação da mão de obra, incremento de setores da economia, como o de lazer e o de educação. Os empresários que afirmam que vão gastar mais poderiam fazer o teste, pois quem tentou está aprovando. A empresa Solpack Agronet, de Rio das Pedras, interior de São Paulo, reduziu a jornada de trabalho de 8 para 6 horas diárias em plena pandemia, mantendo o valor dos salários. A produtividade aumentou em 25% possibilitando ampliar em 64% a quantidade de trabalhadores. Os atestados médicos reduziram, dando tempo ao trabalhador de ir a consultas e cuidar da sua saúde e a qualidade dos produtos melhorou, compensando algum aumento com o custo em contratações. Em Franca, a NovaHaus implementou a semana com quatro dias dando um vale de R$ 400 para cultura e lazer. A produtividade também aumentou.  Esse tipo de negociação pode ser feita com a intermediação de um sindicato ou mesmo apenas com o conjunto dos trabalhadores da empresa. É importante que seja uma solução conversada e negociada. 

 

Para aonde caminham as relações do trabalho no Brasil?

 

Acredito que a flexibilização dos contratos de trabalho, nos aspectos de tempo e de local da prestação do serviço são as consequências mais evidentes. As jornadas de trabalho tendem a ser reduzidas e também o controle sobre os trabalhadores tende a se limitar. Sou otimista: acho que tendemos para um trabalho mais leve e respeitoso das relações humanas, ainda que o Brasil raramente tome a dianteira diante de inovações protetivas aos trabalhadores, sempre com a ideia de oposição entre empresários e empregadores, como se fossem seres de raças diferentes. Quando os dois descobrirem que estão no mesmo barco, e que se o empregador fornecer um motor ao seu empregado em vez de lhe dar um remo, os dois vão navegar águas mais distantes, a sociedade brasileira vai deslanchar na sua evolução. Até lá, vamos continuar navegando em círculos. 


Foto: Luan Porto

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