
"Meu filho precisa de apoio. E eu também"
Mães de alunos especiais travam batalhas silenciosas por professores de apoio que garantam o direito à inclusão de seus filhos nas escolas públicas
“O José se sentiu amparado e incluso. E nós, família, também. Foi um alívio”. A frase de Marlene Alves Galante Gualberto resume o sentimento de milhares de mães em Ribeirão Preto que enfrentam a difícil missão de garantir o direito à educação dos filhos com deficiência nas escolas públicas. Mãe de José Miguel, um menino de 7 anos diagnosticado com autismo, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD), Marlene só viu o filho se sentir acolhido na escola após uma decisão judicial que obrigou a prefeitura a fornecer um professor auxiliar. "A necessidade dele é sempre ter o apoio. E minha intenção é que a prefeitura forneça o mesmo apoio para os outros alunos especiais", afirma.
A escola municipal onde José estuda, Professor Waldemar Roberto, no Jardim Antônio Palocci, tem se esforçado para acolher o menino, mas, segundo a mãe, faz o que pode com os recursos limitados que recebe da Secretaria de Educação. “Sim, falta verba. A escola dá o seu melhor, mas depende da prefeitura para suprir as faltas”, diz Marlene. Quando o apoio ainda não estava garantido, a rotina era de exaustão: “Os desgastes mental e psicológico foram muito grandes. Os gastos sempre existiram: alimentação fora, combustível, remédios para acalmá-lo e a sensação de não vê-lo evoluir era de quebrar o coração”, acrescenta.
A mãe ainda tenta criar pontes com universidades da cidade para buscar parcerias e soluções. “Peço que coloquem a educação em primeiro lugar, principalmente a especial. Visitem essas famílias, adotem uma, ajudem no que for possível”, desabafa.
Assim como Marlene, dezenas de mães relatam situações semelhantes. Tatiana Bernardes Borges, mãe do pequeno Davi, também trava uma batalha para garantir o apoio necessário ao filho, que está no 3º ano da Escola Municipal Virgílio Salata, no Alto do Ipiranga. Davi é autista nível 3 de suporte [grau mais alto de dependência]. Ele usa fraldas, é verbal não funcional, fala algumas palavras aleatórias, mas não consegue formar frases ou expressar necessidades básicas. “No momento, acredito que essa é a principal falha no ensino oferecido: ele precisa de alguém só para ele”, explica Tatiana.
Hoje, Davi divide um professor auxiliar com outro aluno. Tatiana tem acompanhado pessoalmente o filho na escola desde o início do ano. “Em 2024, ele tinha uma pessoa exclusiva com ele. Este ano precisei passar por uma cirurgia e está sendo difícil acompanhá-lo, mas fazemos o possível”, diz ela. A família acionou um advogado e aguarda o andamento do processo para garantir o direito ao apoio exclusivo.
A situação é semelhante à de Rosana Cristina de Souza, mãe de Ricardo, 13, aluno da Escola Professor Jarbas Massulo, no Parque São Sebastião. Ele ainda não consegue fazer suas necessidades sozinho, precisa de ajuda para comer, se vestir e especialmente para escrever. “Ele sabe ler, mas não sabe escrever. Precisa de uma professora que esteja com ele o tempo todo”, afirma sua mãe.
Rosana é presente, está sempre na escola para acompanhar o desenvolvimento do filho, mas reconhece que a estrutura oferecida ainda é insuficiente. “A mediadora frequentemente tem que ficar com outra criança também”. Por isso ela faz um apelo: “Eu peço ao poder público que dê mais atenção às crianças com deficiência. Que a lei seja cumprida. Falta muita coisa ainda. E o poder público precisa lutar por isso”.
A HISTÓRIA QUE NÃO CABE NA LEI
A lei brasileira é clara: toda criança com deficiência tem direito a atendimento educacional especializado (AEE) e ao suporte necessário para garantir sua aprendizagem em igualdade de condições. Em Ribeirão Preto, no entanto, a realidade está distante do que está no papel.
A mãe Ozilda Félix de Oliveira Francisco acompanha a trajetória da filha Rebeka, de 14 anos, que estuda na escola municipal Dercy Célia Seixas Ferrari, no Jardim das Palmeiras. A menina tem síndrome de West, esclerose tuberosa múltipla e mutismo secundário. Ela já apresentou avanços na escola graças a uma professora de apoio, mas agora a liminar que garantiu o suporte pode ser suspensa. “A escola oferece o que tem. Mas o governo e a Secretaria da Educação não dão o suporte necessário. Temos que recorrer à Justiça, à Defensoria, passar por humilhação para conseguir o mínimo”, diz Ozilda. Segundo ela, a alfabetização da filha só está acontecendo por causa da professora de apoio. “A necessidade maior é essa. O resto a escola faz bem feito, mas essa parte é essencial”, acrescenta.
Mãe solo de uma menina de 8 anos de idade e de André Luiz Miguel, 22, autista e esquizofrênico, Carla Maria Miguel tem uma realidade ainda mais difícil. O filho estuda no Centro de Educação Especial Egydio Pedreschi, que atende exclusivamente alunos com necessidades especiais. Eles vivem apenas com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), garantido pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), depois que o Bolsa Família que recebia até 2023 foi cortado. “Não tenho nenhuma renda. Moramos no Campos Elíseos, em uma casa alugada. Não temos nem dinheiro para o gás de cozinha”, conta Carla.
André foi vítima de abuso na infância, o que agravou seu quadro clínico. Apesar das dificuldades, Carla elogia a escola: “É muito bem-organizada. Só acho que mais atividades físicas fariam bem para ele”, diz. Mas o maior pedido dela vai além da sala de aula: “Peço ajuda. Cuidar de dois filhos, sendo um especial, é impossível com um salário mínimo. Não posso trabalhar. Cuido dos dois o tempo todo”, apela.
Nenhuma das mães ouvidas nesta reportagem culpa os professores ou a equipe escolar. Pelo contrário. Todas reconhecem o esforço dos profissionais da educação, que muitas vezes assumem responsabilidades que deveriam ser compartilhadas com o poder público. “As escolas fazem o que podem, mas não dá para fazer sozinha”, resume Ozilda. A frase ecoa em cada história. A inclusão, tão defendida em discursos e campanhas institucionais, parece depender cada vez mais da insistência das famílias — especialmente das mães — e de decisões judiciais. “A escola precisa ser um espaço de acolhimento, não de exclusão”, diz Marlene. “Educação especial é direito, não favor.”
O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Em 2024, após denúncias e representações feitas por mães e associações, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) obteve, na Justiça, a garantia de atendimento especializado para alunos com deficiência nas escolas municipais de Ribeirão Preto. A medida obriga a Prefeitura a disponibilizar professores de apoio para estudantes com recomendação médica ou pedagógica.
Segundo nota oficial do MPSP, essa medida é condicionada à apresentação de laudo ou declaração de profissionais especializados. No entanto, mães e tutores relatam que, mesmo com documentação em mãos, muitas vezes precisam recorrer à Justiça para obter esse direito. A defensoria pública também tem atuado no acolhimento de demandas, mas o volume de casos revela que a rede pública de ensino ainda não está estruturada para garantir a inclusão real de todos os alunos com deficiência.
Carlos Cezar Barbosa, promotor responsável por acompanhar a execução da sentença é direto ao dizer que “a mera matrícula do aluno com deficiência no ensino regular não significa inclusão”. Para o promotor, sem um profissional capacitado que atenda individualmente cada criança com laudo comprovando deficiência intelectual, a aprendizagem fica comprometida. “É impossível se falar em inclusão se não houver um tratamento pedagógico diferenciado. Neste ano, já executamos pelo menos uma dezena de casos em que a Prefeitura descumpriu a sentença”, afirma Barbosa. Quando isso acontece, o MP aplica multa diária de R$ 300 por aluno não atendido.
Segundo o promotor, as famílias devem protocolar o pedido de professor de apoio no Poupatempo, anexando laudo médico, psicológico ou pedagógico. A Prefeitura terá, a partir disso, até 30 dias para providenciar o profissional. Caso contrário, o processo é encaminhado à Promotoria, que passa a cobrar judicialmente o cumprimento da medida.
O atual secretário municipal de Educação, Valdir Martins, defende que a rede tem avançado na construção de um modelo inclusivo. De acordo com ele, há atualmente cerca de 1.300 alunos com deficiência matriculados nas escolas municipais e o atendimento tem sido feito por uma equipe composta por 412 cuidadores, 300 profissionais de apoio pedagógico e 162 professores especialistas. “Nosso entendimento é de que é inviável termos um professor exclusivo para cada aluno. Mas reconhecemos que, para os casos de maior gravidade, isso é essencial. Por isso, estamos trabalhando em um projeto para ampliar esse atendimento”, diz o secretário.
Martins afirma ainda que a gestão atual está comprometida com a expansão do atendimento especializado e que um estudo técnico está em andamento para avaliar a contratação gradual de novos profissionais. “Queremos garantir que cada criança tenha o suporte necessário para se desenvolver plenamente”, conclui.
Já na rede estadual, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) afirma que todos os alunos elegíveis são avaliados individualmente por professores especializados no momento da matrícula. A partir dessa análise, é elaborado o Plano de Atendimento Educacional Especializado (PAEE), que define os recursos e estratégias pedagógicas que cada aluno necessita. Segundo nota da pasta, os estudantes da rede estadual têm acesso ao AEE no contraturno escolar, além do acompanhamento de Profissionais de Apoio Escolar - Vida Diária (PAE-AVD), Profissionais de Apoio em sala de aula (PAE-AE) e professores do projeto Ensino Colaborativo, que alinham o trabalho pedagógico entre os turnos.
Em Ribeirão Preto, 853 estudantes da Educação Especial estão matriculados na rede estadual, acompanhados por 185 professores, segundo dados da Secretaria. Esses educadores recebem formação continuada e acompanhamento pedagógico pela equipe do Núcleo Pedagógico da Diretoria Regional de Ensino. Além disso, um novo decreto permite que atendentes pessoais indicados pelas famílias acompanhem os estudantes na escola, se houver interesse dos responsáveis.
“A INCLUSÃO SÓ É REAL QUANDO HÁ PREPARO, PRESENÇA E PARCERIA”
Para a especialista em aprendizagem Alessandra Freitas, com 25 anos de experiência na área, o verdadeiro impacto na educação de alunos com deficiência começa com a qualificação dos educadores. “Quando o professor está qualificado, ele se torna um agente transformador na sala de aula”, afirma. Segundo ela, o professor de apoio é mais do que um auxílio operacional: “Ele atua como uma ponte entre o aluno, o professor regente e a família, garantindo que as particularidades de cada criança sejam respeitadas”, explica.
Para além da sala, Alessandra destaca o papel central da família e do diálogo transparente com as escolas. “A comunicação eficaz muda tudo. Já vi situações críticas se transformarem quando as famílias acessam o Plano de Ensino Individualizado (PEI) e percebem que há estratégia e cuidado real”, afirma.
O impacto desse acompanhamento atento ficou claro em um caso recente que Alessandra acompanhou em Ribeirão Preto. “Uma família estava angustiada porque não compreendia como o filho autista estava sendo atendido na escola. Sentiam-se no escuro, sem acesso claro às estratégias pedagógicas ou aos avanços reais do menino”, lembra. A virada veio quando a escola promoveu uma reunião com todos os envolvidos no processo: o professor regente, o professor de apoio e os especialistas da equipe pedagógica. “Ali, com transparência e escuta, foi apresentado o PEI e discutidas adaptações específicas para o aluno. O resultado foi visível: ele passou a participar mais, se engajar nas atividades e, principalmente, voltou a sorrir em sala de aula.”
Para a família, o alívio foi imediato e a confiança na escola, restaurada. “Esse tipo de articulação mostra que a inclusão não é só presença física, é construção coletiva, intencional e contínua”, reforça Alessandra.
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