
Quando o conflito é melhor que o silêncio
Para a psicóloga Ana Cecília Chaguri, a comentada minissérie “Adolescência” traz como alerta até onde podem ir os danos gerados pela falta de comunicação entre pais e filhos
Desde lançada em uma das mais populares plataformas de streaming da internet, há três semanas, a minissérie “Adolescência” tem gerado repercussões superlativas nas redes sociais e imprensa. Para participar e enriquecer as discussões, nossa reportagem entrevista a psicóloga psicodramatista Ana Cecília Chaguri, possuidora de grande clientela adolescente e seus pais. “Sempre gostei muito de atender adolescentes, mas também atendo crianças e adultos”, afirma.
Com graduação e mestrado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo – campus Ribeirão Preto (FFCLRP – USP), Ana Cecília atua desde 1992 como psicóloga clínica em Ribeirão Preto, onde nasceu, há 58 anos.
Confira o que ela diz sobre as muitas questões levantadas pela minissérie:
Baseada em sua atuação em consultório, qual você observa ser, atualmente, os maiores gatilhos para distanciamento entre gerações?
O distanciamento entre as gerações faz parte do desenvolvimento. As relações humanas implicam um processo de fusão e diferenciação. Em alguns momentos somos um só. Em outros, precisamos de certa distância. Na adolescência prevalece um distanciamento maior em relação aos pais e uma fusão em relação aos amigos. A questão preocupante é que, de acordo com a história construída no vínculo dessa família com o adolescente, o resultado pode ser de um afastamento saudável ou não. Além disso, como uma pessoa não é constituída só pela família, também circundam a construção desse adolescente as instituições ao qual faz parte, a comunidade. Por sua vez, a comunidade e a família são constituídos por condições sociais e políticas às quais estão inseridas. Ou seja, o resultado de uma adolescência saudável não depende apenas da família, mas de toda a comunidade em que o adolescente está inserido, de todo o contexto sociopolítico do qual faz parte. Portanto, precisamos repensar nossa sociedade individualista, que promove a exclusão ao invés da inserção do adolescente. Esse acesso ao mundo fora de casa na adolescência via internet deve acontecer de forma gradual e controlada. Assim como é o acesso às festas, às saídas, etc.
Como controlar esse acesso?
As famílias que participam de uma comunidade e investem na inserção social de seus adolescentes, desde que eles eram crianças, abrem um espaço de diálogo com seus filhos sobre seu círculo de amizades. Inclusive quando essa vivência social se faz através da internet. É preciso que os pais monitorem, oferecendo tempo de uso e permitindo usar ou não algumas redes sociais, além do cuidado com o tempo de sono. Há aplicativos muito interessantes para isso, mas, com o tempo, apesar de os pais terem a obrigação de monitorar, o controle vai diminuindo e os adolescentes crescendo e encontrando formas de driblar o controle parental e os aplicativos. É por isso que instituições como escolas, igrejas, empresas e as mídias devem proporcionar material reflexivo, grupos de discussões sobre violência, principalmente sobre violência de gênero para pais, filhos e comunidade. Quando o relacionamento entre pais e filhos é saudável, mesmo com o distanciamento natural entre eles na adolescência, fica a certeza da família como porto seguro. Se algo acontece de forma errada, o adolescente sabe que pode contar com a família. Mas se a família sempre julga, oprime e desdenha o adolescente, a tendência dele é se fechar ainda mais, ficando mais vulnerável à sua experiência com o grupo.
Chegou a assistir à minissérie “Adolescência”, que está bombando em um streaming, movimentando a crítica e assustando pais? Se assistiu, qual considera o principal alerta passado por seu roteiro?
O principal alerta da série adolescência é a importância da comunicação entre pais, filhos e interação com a comunidade à qual pertencem.
Em que aspectos e medidas cada um da família do protagonista é vítima e culpado, por exemplo?
A série trabalha o tempo todo com essa questão do que é culpa e do que é vitimismo.
Na verdade, todos eram culpados e vítimas. Eram constituídos por uma série de imposições e escolhas. Enquanto bons pais, nós tentamos não cometer os mesmos erros que, como filhos, achamos que nossos pais cometeram. Na série, acho que a mãe assume a culpa e ajuda o pai a assumir. Mas, ao mesmo tempo, o pai também é vítima da história dele. A impressão é a de que o pai se frustrou muito na relação dele com o próprio pai, que o espancou. Então, ele fez o oposto com o filho dele. Só que quando esse filho não o agrada, ele silencia. E nessa postura o filho se sente invisível para o pai. É fundamental que os pais se importem com os filhos, mesmo que discordem deles. E na série, esse é o problema do pai: não demonstrar. Mesmo que a frustração gere conflito, o problema maior é a indiferença. Tem gente que tem medo do conflito, mas ele é necessário, contanto que ele dê espaço de fala dos dois lados. Mas isso requer maturidade e coragem. Muitas vezes achamos que ouvir a posição de um filho faz com que possamos perder a autoridade. Muito pelo contrário, damos testemunho de respeito ao outro. E podemos construir uma solução em comum. O conflito que faz a gente se comunicar, cria vínculo, traz visibilidade. E é muito ruim para o adolescente ser invisível. A série apresentou mais o papel do pai e o problema dele foi não se posicionar. Quanto aos outros personagens, fica tudo em aberto, o que promete novos episódios.
TEM GENTE QUE TEM MEDO DO CONFLITO, MAS ELE É NECESSÁRIO, CONTANTO QUE ELE DÊ ESPAÇO DE FALA DOS DOIS LADOS. (...) O CONFLITO FAZ A GENTE SE COMUNICAR, CRIA VÍNCULO, TRAZ VISIBILIDADE.
Houve crítico dizendo que a série é um grande pesadelo para pais de adolescentes...
Na série, às vezes, fica parecendo que é um castigo ter um filho adolescente. Os filhos ensinam muito a gente. O adolescente, em especial, é um presente para os pais. A gente tem um ser humano em potencial com a emoção exacerbada e em função disso, nós, pais, aprendemos muito. Nós, profissionais que lidamos com adolescentes, também. O adolescente põe a gente em cheque o tempo todo. Se a gente tiver a humildade de entender essa postura e falar “olha, repensei e acho que talvez você tenha razão por esse ponto, mas eu discordo naquele e naquele outro”, a gente abre espaço para a comunicação. Quando a gente constrói um vínculo bom com a criança, e ela se torna adolescente e se afasta, é um processo saudável. O adolescente que fica grudado nos pais não está saudável. Porque o adolescente precisa se afastar para crescer. Mas quando a gente tem um vínculo bom com o filho, um vínculo de confiança, que respeita o adolescente, que não o diminui, ele volta para gente quando precisar de um porto seguro.
Considera a abordagem da psicóloga forense feita ao adolescente protagonista, na minissérie, correta?
A psicóloga forense foi bárbara! Se aproximou do adolescente, conseguiu construir vínculo, estabeleceu uma relação verdadeira com hierarquia. Conseguiu investigar, o que era o seu papel. A intervenção, que de alguma forma ele implorou a ela, não lhe cabia no momento, mas o fato dela deixá-lo de forma extremamente profissional, provavelmente o amadureceu para que ele assumisse seu ato.
Qual terapia acha que deveria ser aplicada ao adolescente protagonista e com qual objetivo?
Muito pertinente essa pergunta porque é a que os profissionais de saúde e educação fazem: “que terapeuta eu tenho que indicar?” Todo atendimento psicológico é processual. O adolescente protagonista precisa de um psicólogo muito competente de qualquer linha. Contanto que ele repense seus objetivos de acordo com a situação, avalie a importância de um trabalho individual e também em grupo, proponha uma orientação profissional para a família e escola e esteja aberto a um trabalho multidisciplinar com o adolescente.
Acha que os principais fatos desenrolados na série são factíveis de ocorrer em nossa realidade local? Por quê?
Sim. Infelizmente, os jovens brasileiros estão imersos em uma sociedade individualista, e com poucas perspectivas de futuro. E sabemos que pessoas nasceram para brilhar. Quando elas não conseguem ter visibilidade pelos seus talentos e estão inseridas em comunidades e famílias reprodutoras de violência, somada ao fato de terem relações não corporificadas, não presenciais através das redes sociais, gera uma sensação de impunidade e invisibilidade que pode levar à violência contra o outro ou a si mesmo. É preciso darmos visibilidade aos talentos dos adolescentes através da educação, do esporte, da arte e da convivência.
E como a sociedade como um todo pode evitar que ocorram?
É importantíssimo que o Estado promova políticas públicas que propiciem a convivência. Todo bairro deveria ter hortas comunitárias e cursos de culinária, quadras esportivas, cursos de música e artes plásticas, dança, porque a empatia é construída na convivência. E quanto mais um adolescente tem espaços para desenvolver talentos e brilhar no seu grupo, mais realizado fica. Aumentará a autoestima e tornar-se-á menos violento. Fica aí a sugestão de políticas públicas às prefeituras da nossa região. Além disso, as instituições escolares deveriam promover a convivência dos jovens em outros espaços comunitários, através de trabalhos voluntários responsáveis. Muitos países valorizam esse tipo de trabalho no currículo dos jovens. A realização através de espaços de convivência seja pelo lazer ou pelo trabalho voluntário, é bem diferente da realização pelo consumo ou pela infelicidade de não poder consumir, impostas pelo nosso sistema individualista.
Lucas Nunes