
Dimensão Paralela
Aumento da prevalência do TEA demonstra a necessidade cada vez maior de políticas públicas efetivas de inclusão, aponta Ana Carolina Felício, idealizadora do TeAbraço
“Abril Azul” é o mês de conscientização sobre o autismo — condição que envolve atrasos no desenvolvimento da linguagem e do comportamento social. A iniciativa nasceu da criação, pela Organização das Nações Unidas (ONU), do Dia Mundial de Conscientização do Autismo, em 2 de abril de 2007, com o objetivo de promover a inclusão social e a redução do preconceito contra as pessoas com TEA (Transtorno do Espectro Autista).
Para ampliar o olhar sobre as nuances da convivência entre neurotípicos e neurodivergentes, convidamos Ana Carolina Felício Pinto para contar um pouco de sua vivência como “mãe em tempo integral” da Júlia Felício Machado, uma autista de 25 anos. Para ela, é uma “função” que requer não somente amor, mas também estudo e paciência e que pode, sim, ser reconhecida como uma “profissão do futuro”. Afinal, é cada vez maior o número de autistas no Brasil e no mundo, como ela revela nesta entrevista.
Como foi se descobrir mãe de uma criança autista?
Assustador! Cada maternidade é única. Quando meu primeiro filho nasceu, ganhei o livro “Dr. Larousse”, um manual com respostas para quase tudo e muitos conselhos de familiares e amigos. Com a Ju e o diagnóstico de TEA foi uma grande e nova aventura — desconhecida e solitária — por mares nunca navegados, porque, por medo ou preconceito, as pessoas se afastam quando deveriam fazer o oposto, pois o que uma família mais precisa nessa situação é de rede de apoio, algo raro ou inexistente. Como desistir nunca foi uma opção, desbravei o universo autista, que é uma dimensão paralela, algo que fazemos até hoje.
O que essa maternidade requer?
Em primeiro lugar, AMOR; depois persistência, conhecimento, força, esperança, paciência, criatividade, compaixão, saúde, dedicação, resistência e, acima de tudo, fé em Deus.
Você se debruçou sobre o tema e acabou criando o TeAbraço. Como foi isso?
Quando a Ju nasceu, não tinha muita opção de tratamentos, cursos, etc. Tive o privilégio de poder levá-la para os Estados Unidos, com o apoio de meus pais, quando ela tinha 1 ano de idade. Conheci o Dr. Gadia e sua equipe e minha vida mudou. A Ju tinha epilepsia, seu primeiro diagnóstico. Depois veio TEA, dislexia (DI) e síndromes raras. Passava uma temporada lá com ela todos os anos e nos empenhávamos muito. Eu fazia cursos e treinamentos enquanto ela fazia tratamentos intensivos e meu filho, um forte guerreiro, sempre ao nosso lado. Seu desenvolvimento foi incrível e aprendi sobre a importância da família no sucesso do tratamento. Sempre que voltava, famílias e profissionais que viam a Ju se surpreendiam e queriam saber o que tinha lá de tão diferente. Cresceram dentro de mim um sentimento enorme de gratidão a Deus por ter essa oportunidade e a vontade de compartilhar o que eu vivia lá com famílias e profissionais que não poderiam ter essa experiência. Dr. Gadia e eu criamos um Congresso — não apenas para a área médica, mas para famílias também, pois são elas as grandes responsáveis por um tratamento de êxito — e foi o primeiro nesse modelo no Brasil. Com o apoio do Iguatemi pudemos sair das quatro paredes. Dr. Gadia organizava a parte técnica e científica e eu a operacional. O intuito era capacitar e treinar profissionais da área, mas principalmente as famílias. Fizemos uma boa dupla. Foi muito especial. A partir daí surgiram outros congressos e mães se juntaram para fazer grandes e importantes projetos, que hoje se destacam no Brasil.
Como avalia a teoria e a prática de lidar com o autismo no dia a dia?
Eu, de fato, aprendi na prática, mas tive a teoria de apoio e vejo que isso realmente funciona, porque não tem como colocar uma vida apenas em um protocolo. Muitos autistas têm algo em comum, até mesmo os marcos do desenvolvimento (tipo uma tabela), o que ajuda muito no diagnóstico, mas com os anos, as individualidades vão aparecendo e é muito importante o tratamento individualizado. Vejo aí a grande diferença entre os tratamentos dos EUA e do Brasil. Lá é mais prático e individualizado, de forma mais simples e eficaz, com planejamento, metas e resultados. Aqui é mais teoria, que nem sempre funciona, porque muitos profissionais ficam apenas nos protocolos e esquecem que estão lindando não com um diagnóstico, mas com um ser humano que tem sentimentos, traumas, emoções, uma história, ambiente familiar, escolar e social.
Tratamento é o maior desafio das famílias, então?
Acho que o grande desafio das famílias é achar profissionais capacitados e comprometidos em absorver a maior quantidade de conhecimento cientificamente comprovado e ir separando o que, de fato, é bom para cada criança. E como o autismo está cada vez mais em alta, muitas pessoas ainda se aproveitam da fragilidade das famílias para extorquir financeira e emocionalmente, o que é revoltante.
Você comentou sobre esse “romantismo” do autismo relacionado a altas habilidades...
A maioria das histórias que são mostradas nos filmes, programas e redes sociais são de autistas que se destacam por suas habilidades, sejam intelectuais ou artísticas, etc. Porém, isso equivale, acredito, a menos de 10% deles. O que não se mostra é que, mesmo com altas funcionalidades, a maioria tem seus desafios, crises, dificuldades sociais, sensoriais, etc. Muitos conseguem se adaptar melhor na sociedade, casar, ter filhos, trabalhar, mas não deixa de ser difícil e solitário muitas vezes.
Sobre as estatísticas de crescimento do número de autistas. Quais dados você tem e qual análise desse cenário você faz?
O crescimento da prevalência do autismo nas últimas décadas preocupa tanto profissionais de saúde quanto a população em geral. Já se chegou a levantar a hipótese de que poderia haver uma epidemia de autismo devido a esse aumento. Os dados que tenho são passados pelo Gadia. Nos anos 1970, estimava-se que uma criança a cada 10 mil tinha TEA. Nos anos 1980, essa taxa subiu para 4 em 10 mil e, em 1995, já era de 1 em 1.000. No início dos anos 2000, chegou a 1 em 500. O último relatório do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), apontou que 1 em cada 36 crianças de 8 anos foram identificadas com TEA, nos EUA, no ano de 2020. É um dado que requer cautela, pois se baseia em informações de escolas, sem necessariamente contar com diagnósticos médicos detalhados, e nos EUA o diagnóstico de TEA garante acesso a mais acomodações escolares e terapias cobertas por planos de saúde, o que pode influenciar a quantidade de diagnósticos.
Mas há também outras explicações para esse aumento...
Sim, o crescimento é claro, e pode ser explicado, segundo Dr. Gadia, pela mudança dos critérios diagnósticos. Antes de 1994, o DSM-III definia o autismo com base na ausência de comunicação e interação social. Com a chegada do DSM-IV, em 1994, a definição foi ampliada para incluir déficits na qualidade da comunicação e interação social, aumentando significativamente os diagnósticos. Esse fenômeno ficou conhecido como o “tsunami do autismo”. Além disso, outros fatores contribuíram para o aumento da prevalência, como maior conscientização entre profissionais de saúde e a população; maior acesso à informação, facilitado pelas redes sociais; fatores geográficos, com famílias se mudando para centros urbanos, aumentando a identificação de casos; idade paterna avançada, embora com impacto menor; e possíveis fatores ambientais, ainda não totalmente compreendidos.
Você comentou sobre as diferentes “fases” de se lidar com o TEA, em função da idade do autista. Como é isso na prática?
Outra frase resume bem as dificuldades em cada faixa etária: “a cada centímetro que nossos filhos atípicos crescem, as barreiras aumentam”. Ao contrário de famílias típicas, que quando os filhos crescem o mundo vai se ampliando, para nós, com filhos atípicos, vai diminuindo e ficando solitário. Sem estruturas, nosso mundo vai encolhendo ao longo da vida, vamos sendo limitados até viver em um ponto. A busca por maiores centros, com mais ofertas, demandas e desenvolvimento se torna uma opção de busca por oportunidades de pertencimento, currículos, amigos e vida. O lugar de nossos filhos não deveria ser em clínicas especializadas, instituições especiais ou isolados dentro de casa e sim incluídos em todos os lugares, pois todos ganham com isso.
Vocês viveram um momento delicado com a tentativa de suicídio da Ju, em função de bullying. Como foi isso?
Se os pais soubessem o estrago que o bullying faz em uma vida, em uma família inteira, que ele pode matar — e se, de fato, fosse levado como crime —, teríamos um cenário bem diferente. O bullying é uma questão de educação dos pais. Se os filhos praticam, os pais são responsáveis, porque as vítimas são os mais vulneráveis. O bullying não levou a vida da Ju, graças a Deus, mas a vida da Ju leva o bullying até hoje. Essa atitude tirou oportunidades únicas e preciosas da vida dela, deixando dor, traumas e sequelas na alma, que ainda trabalhamos incansavelmente para ajudá-la a superar. O bullying é uma tortura cruel e covarde, que a vítima passa de forma silenciosa, e se nós, pais, não estivermos muito atentos, quando percebermos pode ser tarde demais.
A partir da toda sua vivência, qual sua visão sobre a “inclusão” praticada nas escolas?
Por muitos anos acreditei fielmente na inclusão. Hoje, sou meio cética sobre esse assunto. Não apenas nas escolas, acreditava em inclusão no meio social, familiar, etc, mas quando pensamos na base de tudo, já temos um marco do quanto é difícil. Mais de 90% dos pais se separam no começo da trajetória de um filho com desenvolvimento atípico, mesmo sem diagnóstico, ou seja, já não conseguimos incluir essa criança nem na própria família ou em amizades, que é a primeira etapa.
Nos ambientes sociais, de modo geral, quais dificuldades e soluções você aponta?
Certa vez ouvi essa frase: “Só existem dois tipos de problemas, o meu e o dos outros. E o dos outros eu não quero saber”. Confesso que, na hora, até achei engraçado, mas depois vi a seriedade disso. A grande dificuldade está aí: as pessoas já estão tão sobrecarregadas, irritadas, intolerantes com suas próprias questões e não existe lugar para o outro. Só não imaginamos que estamos todos sujeitos a ser o outro. Se existisse apenas mais gentileza e empatia, já estaria muito bom. A maioria das famílias típicas acredita que os atípicos atrapalham e não querem conviver com um filho que não se enquadra nesses padrões — quando, na verdade, deveria ser o contrário —, pois a convivência com pessoas neurodivergentes faz seres humanos melhores. As pessoas aprendem a ter mais empatia, resiliência, gentileza, compaixão, criatividade e paciência. Além disso, potencializa-se a habilidade de solução de problemas, lida-se melhor com fracassos e frustrações, com mais inteligência e saúde, não apenas cognitiva, mas emocional e mental. Acredito que essa seja uma questão de evolução da humanidade. Teríamos um mundo muito melhor, sem bullying, e com menos pessoas doentes emocionalmente.
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