"Arte não é para máquinas"

"Arte não é para máquinas"

Para o escritor Menalton Braff a literatura amplia a visão de mundo e humaniza

Escritor premiado, ex-professor universitário, autor de mais de 30 livros — entre romances, contos e novelas —, Menalton Braff encantou o público da Degustadora de Livros, em Ribeirão Preto, no dia 17 de maio, com sua fala envolvente sobre o poder da literatura.

 

Aos 84 anos, com uma trajetória que atravessa décadas de dedicação à escrita, ele compartilha nesta entrevista sua visão sobre o papel transformador da leitura e a delicada construção de personagens e palavras, capazes de tornar a literatura um caminho para o autoconhecimento e para a liberdade, muito embora, a seu ver, o compromisso da literatura seja somente artístico.


Qual a importância da leitura?
A palavra leitura vem do verbo ler, cuja etimologia também está relacionada a colher, como em colheita. Podemos pensar em dois tipos fundamentais de leitura: a leitura da palavra e a leitura do mundo. A leitura da palavra envolve livros, jornais, revistas, textos da internet — ou seja, o que está escrito. O livro é uma fonte milenar de conhecimento, mas apenas passar os olhos por símbolos gráficos não é o mesmo que ler de fato. Uma coisa é ver, outra bem diferente é olhar. E se eu não olho, eu não colho.

 

Ou seja, não há colheita de sentido, de aprendizado. Já a leitura do mundo envolve observar nossa cidade, nossa família, nossa casa, nosso país, o planeta como um todo. Uma pessoa bem-informada precisa ser capaz de ler o mundo: interpretar os acontecimentos, refletir sobre o que acontece à sua volta, conectar as informações. Caso contrário, fica apenas vendo, sem olhar de verdade. Conhecer-se exige esse olhar atento. Ver é automático, basta estar com os olhos abertos. Mas olhar, no sentido profundo, exige intenção, exige presença. Só assim há transformação, só assim colhemos o que está fora de nós e o trazemos para dentro. Isso é ler o mundo — e também a vida.



E a leitura de literatura em si?
Umberto Eco afirmou que quem não lê vive uma vida. Que lê literatura vive diversas vidas. O leitor, sobretudo de literatura tem uma visão mais ampla e mais clara do mundo, de seus semelhantes e de si. Mas além desse sentido mais prático como resultado da leitura, o leitor de literatura afina sua sensibilidade, passa por emoções que jamais sua vida lhe proporcionaria. Amar e odiar sem arriscar a vida.



Você disse que “o leitor ideal é aquele que também se desnuda ao ler”. Pode explicar isso?
Quando lemos com profundidade, nos abrimos para a experiência do outro, mas também nos confrontamos com aquilo que somos. A literatura boa provoca, inquieta. Quando nos deparamos com determinado comportamento humano em que jamais teríamos pensado, tomamos um choque de autoconhecimento ao afirmarmos positiva ou negativamente nossa adesão ou rejeição a tal atitude. É nesse processo que nos transformamos.



Qual a sua definição de literatura?
Literatura é a arte da palavra. É a palavra usada com senso artístico. Há dois tipos de leitura, aquela para adquirir conhecimento em determinado tema de interesse (livro informativo) e aquela para ser um momento prazeroso (literatura). Um livro de literatura pode transmitir informação, mas não é sua obrigação. A literatura não tem obrigação com nada a não ser com si mesma, com sua estética, ou seja, com ter boa ou má qualidade. Apenas isso. Machado de Assis, o maior escritor brasileiro, insuperável, escreveu histórias aparentemente banais, histórias bem simples. Agora, com que linguagem ele contou essas histórias? Isso é que importa!



Qual o compromisso da literatura?
Não sendo imanentista como correntes críticas do passado recente, e admitindo algum compromisso da literatura, podemos dizer que o principal compromisso é causar o prazer estético, que se encontra principalmente no plano da expressão. Evidente que, não havendo conteúdo zero quando se usam palavras, o bom texto pode também provocar reflexões. A literatura não existe para afagar o ego de ninguém. Ela incomoda muito mais do que afaga. Ela exige que nos posicionemos perante a complexidade do mundo, seja em que sentido for.

 

Pode ampliar um pouco essa distinção que você comenta sobre o plano da expressão e do conteúdo?
O plano da expressão, ela dá a literariedade, o plano do conteúdo pode ser dado em um ensaio, em um filme, em um texto jornalístico, em um quadrinho, o da expressão é único, um romance não é uma história é uma linguagem. Costuma-se dizer que o romance é seu discurso. Posso escrever um ensaio psicológico sobre o ciúme, fazer um filme sobre o mesmo assunto, ou relatar em uma reportagem um caso de um ciumento.

 

Pois bem, também pode-se escrever um romance sobre Bentinho e Capitu. Se eu resumir a história desse casal, não passo a menor ideia do romance ao leitor. Por quê? Porque a grandeza do romance está no desenvolvimento narrativo de comportamentos ciumentos, está na linguagem em que a história foi contada, na estrutura como tudo foi organizado. A este conjunto de fatores, ao grau de invenção de linguagem, a isso que podemos chamar de literariedade, ou seja, qualidade literária.

 


A literatura pode transformar a vida de alguém?
Bem, a literatura, como a pintura, a música e outra e qualquer arte, não tem como preocupação precípua transformar ninguém. A arte é para causar prazer, principalmente, porque a busca do Belo é uma inerência do ser humano. Por mais rude, rústico, que seja o ser humano ele sempre se inclina perante o Belo. O Belo, nem sempre para o bonito. Em Recordação da Casa dos Mortos, Dostoiewski nos dá o exemplo de um prisioneiro que matara a família por razões banais e que na prisão da Sibéria fica indignado contra um companheiro que esmagara uma flor sob sua bota. Então, pode-se dizer que, ao agudizar nossa sensibilidade, a arte nos humaniza.



Quais benefícios a leitura pode oferecer, na sua opinião?
Ela amplia nossa visão de mundo, aumenta nossa empatia, nos tira do centro do universo, nos permite ir além de nós mesmos. A leitura nos humaniza, nos ensina a lidar com o outro e com nós mesmos. Ela é como um espelho em que podemos nos enxergar melhor. A autoidentificação é seu primeiro benefício porque quando lemos um livro e nos identificamos ou nos desidentificamos com um determinado comportamento naquela narrativa — principalmente de romance, conto ou novela —, estamos acordando para algo que somos ou não somos, de repente, estamos nos conhecendo um pouco melhor como resultado da leitura.



Você comentou que a poesia ficou ‘parada no tempo’. Pode ampliar essa percepção?
De maneira alguma. Afirmei que alguns poetas não perceberam as mudanças formais, sobretudo, que aconteceram com o passar do tempo. Veja-se a poesia do século XIX e o que aconteceu em 1922. Sei de gente fazendo poesia com formas anteriores ao Olavo Bilac. Isso sim, não cabe mais.

 


E o conto, o que tem a dizer sobre?
Gente, o conto demandaria umas oito horas para falar um pouco. Bem superficialmente se pode afirmar que o conto admite um único drama, com economia radical dos meios. O conto é uma orquestração muito afinada de palavras. Ele está muito próximo da poesia. Se o romance é o mar, o conto é uma piscina.  

 


Que análise você faz das escolhas de livros vestibulares?
Discordo e me parece que isso não é nada educativo. Os alunos, mesmo os que leem, ficam pensando que a literatura está resumida na lista fornecida pelas universidades. Melhor seria que se estudasse realmente textos literários no Ensino Médio, capacitando o candidato a encarar qualquer texto no vestibular. E já nem falo dos resumos, que considero crime.



Qual a sua opinião sobre o uso de Inteligência Artificial - IA?
Em Literatura? Não, arte não é para máquinas.


Na palestra houve uma divergência de opiniões sobre a definição “jornalismo literário”. Qual seu ponto final sobre a questão?
Persiste uma corrente de opinião confundindo conceitos como o “jornalismo literário”. Ora, a função do jornalismo é informar, e informar bem. Portanto seu texto é fechado, não admite variedade de interpretações, como acontece com o texto literário, que é ambíguo, elíptico, lança mão de figuras de retórica. É texto aberto por definição porque não pretende informar e cada leitor fará sua leitura.

 

Se o texto do jornalista quer encantar, seu texto não é jornalístico, mas literário. Se lança mão dos recursos de retórica, não produzirá boa informação. O que não existe é hierarquia entre os dois. Ambos são necessários, exercendo funções bem diferentes. A linguagem jornalística tem que ser social, clara, precisa para bem informar. A linguagem literária é autoral.



Você falou que a linguagem tem que ser “viva e sensorial”. Como isso aparece na sua escrita?
Não, “viva e sensorial” caracteriza uma corrente literária, não só mas também, e trata-se do Impressionismo. Minha literatura tem traços impressionistas, mas isso é uma escolha individual. Claro, como qualquer arte, tem que ter o dedo do autor. A linguagem que se usa em um texto literário tem que ter a marca do seu autor. Ninguém vai confundir uma tela sem saber se é do Portinari ou do Picasso. Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, em termos de linguagem são opostos, mas ambos fizeram arte literária.



Você acredita que o escritor tem uma missão?
Olha, esse negócio de missão, isso morreu com o Romantismo, século XIX. Eles falavam em “poeta vate”, missão de conduzir a humanidade. Isso até me arrepia. Não suportaria tanto peso nas minhas costas. O escritor não tem missão, como não tem o músico, o pintor, o ator, qualquer artista.

 

Qual o seu próximo projeto?
Bem, estou no mundo, preciso ocupar algum espaço, e desde a infância meu passatempo preferido foi ler e escrever. Meu próximo romance, talvez saia em setembro ou outubro, será uma experiência de técnica narrativa que me deu muito prazer. Será Enfim a liberdade. E haja “fluxo de consciência”.


Foto: Divulgação

Compartilhar: